quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

30 de Setembro de 2006

Minha querida Laurinda
Estou a adorar esta troca de correspondência.
Constato que, felizmente, não me engano: a cada palavra encontro-me mais em comum consigo.
Quando li as suas palavras …o cheiro a giestas, margaças, estevas, pinheiro,…não consegui evitar que uma lágrima mais afoita rompesse a vontade de chorar e caísse pela cara em direcção à boca.
Também eu estive de férias, primeiro numa aldeia perto de Vila Flor, no Seixo, depois Ciudad Rodrigo e Serra da Estrela, onde a neve nos brindou como se fosse Natal e nos estivessem a dar uma prenda. A minha mãe teve um acidente e partiu a clavícula, tendo que ser operada dentro de poucos dias, embora ainda não tenhamos uma data certa. Se não tivesse sido isso, que nos trouxe para a masmorra da cidade, mais cedo do que o pretendido, só teria chegado ontem. Passei perto de Benquerença e falámos em vocês. Não vou repetir o que o João me disse…
Por mim, não voltaria. Claro que sou arreigada à minha terra, mas penso, do coração, que qualquer uma me serviria, nesta minha fome de fugir daqui, como quando temos de facto fome e qualquer pão duro com manteiga, nos sabe tão bem como a mais opípara refeição. As minhas exigências consistem em sair daqui. Nada mais.
O que leio, leva-me para longe, bem longe, quase como dizia a outra, longe de sitio nenhum…, mas é só onde me sinto bem e onde, tenho a certeza, eu me sentiria em casa. Porém, quando tomamos estas decisões de viver com alguém, temos que respeitar a opinião do outro e o outro, consubstanciado no João, não encontra o que fazer fora desta prisão. Tenho agora um projecto em vista, que consiste em procurar trabalho na zona de Santarém. Assim, poderia levar uma vida mais calma, mais perto do Duarte e o João poderia trabalhar em Lisboa, pois demorava o mesmo tempo a chegar.
Como vê, compreendo perfeitamente a sua angústia de cidadã da cidade. Adorei andar estes dias com botas e calças de ganga. Adorei andar à chuva, sem preocupações de dar cabo do cabelo e chegar despenteada à reunião das cinco. Adorei dizer SIM ao meu filho, quando me pediu para não tomar banho hoje e vestir a roupa do dia anterior. Adorei comer e beber devagar como se o tempo fosse meu cúmplice e parasse para que eu o pudesse usufruir. Adorei andar de carro sem ouvir as notícias dos engarrafamentos aqui e ali. Adorei conversar com pessoas sem cursos, por vezes sem a instrução básica, mas que me dizem coisas que as valoriza acima da maioria e que me ensinam coisas que mais ninguém me ensina. Adorei conversar com o meu marido e com o meu filho, coisa que não faço aqui, na prisão, pois temos horas para tudo e se passam essas tempos próprios perdemos a oportunidade de fazermos o que queremos. Adorei estar deitada na neve e sentir o frio gelado que me entrava até pela boca e me fazia doer os dentes, sem ir a correr tomar um comprimido para as dores. Adorei fugir.
Estou a odiar o regresso. Para colmatar este mau estar, encontrei uma carta sua em cima da secretária. Contrariando tudo, escrevo-lhe, antes de me inteirar do que aconteceu por aqui na minha ausência. Sinto uma grande inveja por ter quem lhe leia poesia. Eu não tenho. O João não gosta. Diz que só gosta da que eu escrevo, mas eu sei que é simpatia, pois di-lo para que eu me sinta satisfeita… Não consigo deixar de sorrir, pois ao fim de 17 anos de convívio, ele ainda não me conhece. Ele próprio o diz e, para se defender, afirma que gosta que assim seja, pois vive numa total surpresa. Chego a ter medo de interpretar e aprofundar esta questão…
De certa forma, isto liga-se com aquela questão que me coloca, a da vida. Este princípio de tentar viver cada dia como se fosse o último, o que parece uma incongruência com o querer viver calmamente, mas não é, dá cabo de mim. A vida dá cabo de mim, porque não faço o que gostaria, porque me obriga a ser quem não sou, a olhar ao espelho uma pessoa de quem nem sempre gosto, porque não me assumo tal como sou. Eu não sou eu, sou diferente. Os sapatos que calço e me estão apertados, não são meus. As camisas passadas a ferro não são a minha cara. Os collants…odeio-os. O fumo dos escapes do carros, enlouquece-me. A cidade mata-me. E eu, eu fraqueza em estado puro, deixo-me matar, numa morte lenta e dolorosa aos olhos de toda a gente, em grupo, rindo fingidamente, parecendo gostar, arrastando-me num suicídio anunciado, parafraseando o outro rapaz. Continuo a achar os outros mais importantes que tudo e deixo-me estar. Seria incapaz de largar tudo e ir. Seria incapaz de cortar estes laços, mesmo que eles pareçam invisíveis mas existem. Seria incapaz de deixar de remar contra a corrente e lançar-me ao mar. Porque estou sozinha. Se estivesse acompanhada já tinha ido. Para dizer a verdade estou muito preocupada com o João. Ele sempre me preocupou, talvez por viver demasiado preocupado. Mas agora estou mesmo apreensiva. O meu marido não tem um amigo, não desenvolve qualquer conversa, sonha alto com o serviço, esquece-se da existência da família – leia-se pais, irmã, avó, etc. - não tem qualquer ocupação paralela, nenhum hobbie, odeia o mundo – não a cidade, o mundo! – fecha-se em casa e como não sabe o que há-de fazer, mete-se na cama. E chora. Diz que não nos dá atenção e martiriza-se por isso. Eu digo-lhe que não precisamos de muita atenção – eu própria não dou muita atenção a nada – mas é preciso é que quando tenhamos um momento, o saibamos aproveitar e o façamos com intensidade, a fazer coisas que gostamos, nem que seja estar deitado a ouvir ler para nós. Ele cada vez tem mais responsabilidades, mais trabalho e tem a noção exacta que, se não corresponder, vai-se embora.
Eu vou caminhar para a praia ao fim de semana, o Duarte corre, joga à bola, molha-se – ah, que inveja… - e ele senta-se na areia a pensar…depois diz que precisa de fazer exercício, mas não se mexe. Eu saio à noite, com a minha irmã e o namorado e ele fica em casa. Quando manifesto a vontade de ficar com ele, ele diz que não, quase que me obriga a ir e, em última análise, acaba por ir se eu mostrar firmeza em ficar com ele. A única coisa em que não condescende é em sairmos daqui. Passámos a Páscoa com uns amigos no norte, como disse. Ele tinha que fazer um esforço enorme para prestar atenção à conversa, mesmo durante o jantar. Eu sei que ele precisa de ajuda e que sou eu quem o tem que ajudar mas, em simultâneo, há tanta coisa que eu gosto que me passa diante do nariz, devagar, devagarinho, como se fosse para que eu tenha oportunidade de as agarrar…e eu deixo-me ficar…por ele. Será isto o amor? Não sei, não posso ter a certeza. Eu sei que amo o Duarte, é tão intenso, tão abrasador, tão íntimo, tão inexplicável, tão sobrenatural, que não sobra qualquer espaço para dúvidas. Mas com o João, é diferente. Eu digo-lhe tudo isto, ele aceita sem contestações, aceita bem demais, temo eu…
Depois disto tudo compreende que eu não ando por ai a dizer e a afirmar que não quero nada disto, quero ir-me embora, deixem-me em paz, eu não pertenço a este filme, esta vida não é minha,…
O João não merece e ele, especialmente agora, precisa de mim.
Daí eu dizer que não consigo contabilizar o mal que a vida me faz. Se eu não teimasse em querer vivê-la da forma que quero, tudo seria mais fácil. Acomodava-me e pronto.
Na ânsia de continuar a receber noticias suas, do campo, do Quim, da família que a envolve, do cheiro maravilhoso que sinto ao ler as suas cartas, despeço-me com um beijo enorme de saudades
Sua amiga
Camila

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