quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

A rapariga que não gostava de livros com as capas dobradas - I

Estava cansada de ler o jornal. Bem, não se podia dizer que estivesse a ler. Vasculhava a secção de anúncios à procura de trabalho. Estava farta de ter um emprego, com dinheiro ao fim do mês, é certo, mas não era o que pretendia. Afinal, tinha tirado um curso para quê? Para trabalhar em algo ligado ao que lhe tinha ocupado cinco anos da sua vida. Cinco anos. Num dos cinco anos, no primeiro, conhecera o Robin, nome dado a um débil rapazito com quase um metro e noventa e cento e dezasseis quilos de corpinho. Um Robin, com quem a família brincava, dizendo-lhe que, quando casassem, tornar-se-ia num pombo, com uma anilha no dedo.
A enormidade dele era pequena diante da força da pequenez dela. Um metro e sessenta chegava para fazer frente fosse ao que fosse: um polícia que teimava ser mais zeloso que toda a corporação junta; um professor de Teoria da Literatura em fúria; uma trovoada seca no Alentejo; uma vaca, esperando que ela, se fosse forcada, a agarrasse; a sua família…
A sua família era um verdadeiro espanta espíritos: nunca se calava e nunca se sabia para que lado o vento os levava. Pareciam uma família de italianos, mas eram uma família alentejana radicada em Lisboa.
Ela adorava a família embora parecessem estar sempre zangados uns com os outros, os gritos fossem constantes, as acusações permanentes e o amor eterno. Não podiam estar longe uns dos outros: ela e a irmã, o pai e a mãe. O namorado e o cunhado. E o sobrinho. E os amigos. E a lembrança dos avós que moravam na parte mais ensolarada do cemitério da aldeia.
Ela falava alemão correctamente, tão correctamente que dava inveja. Fizera um estágio de um ano em Hannover, o que lhe deu uma fluência, que lhe permitia ajudar estrangeiros na rua, ler Gunter Grass na língua original e irritar a família quando decidia falar alemão sozinha. Uma coisa era certa: por muito grandes que fossem as palavras, não continham palavrões. Ela não os utilizava. Deixava-os para a irmã.
Liam as duas compulsivamente. Liam todos os livros de um determinado autor de seguida, trocando-os quando os terminavam. Liam mais depressa que qualquer outra pessoa, e as suas conversas eram quase sempre sobre o que liam, contando passagens dos livros, lendo parágrafos dos livros, de modo que quando a outra pegava no título em questão, já lhe conhecia o enredo.
Desta forma, conversavam numa espécie de código. Bastava uma delas referir qualquer coisa relativa a um livro para as duas contextualizarem a cena e perceberem-se em quase total silêncio, interrompido pelas gargalhadas que davam, se fosse caso disso.
A maior parte das vezes, quando iam de comboio, a irmã falava sobre qualquer coisa, geralmente sobre um livro…, e ela repetia tudo o que a irmã dizia, em alemão, fazendo uma tradução simultânea para os pouco prováveis alemães que se encaminhassem para Lisboa, àquela hora tão matinal, naqueles comboios e metros tão apinhadinhos.
A outra mandava-a calar vezes sem conta e ela mandava calar alguém, em alemão, não só repetindo as palavras, como imitando o ar zangado e enfadado da irmã. E lá se despediam no meio de beijos e adeuses e palavras a sair dos lábios sem que ninguém as ouvisse, pois elas entendiam-se em silêncio.
E uma ia para a sua agência de viagens, sua porque o local de trabalho é tão nosso, como qualquer outra coisa onde passemos muito tempo ou que utilizemos com frequência, o nosso café, a nossa aldeia, o nosso prédio, o nosso detergente e sei lá quantos nossos mais, e a outra ia para a agência de publicidade, também sua, na mesma medida em que a de viagens era da outra.
A irmã, que trabalhava na agência de viagens, vivia na lua. Cada bilhete comprado e passado e impresso, fosse para onde fosse, era como se lhe pertencesse. Conhecia o mundo embora nunca tivesse ido muito longe. Claro que conhecia Badajoz. Coleccionava mapas e passeava-se por eles de modo a poder dar indicações sobre aldeias perdidas nos Alpes, oásis na Argélia e postos de recepção de correio na Terra do Fogo, lá para os lados do fim do mundo, exactamente como tinha lido num livro do Sepúlveda.
Só o facto de passar o dia rodeada de cartazes com praias onde mares azuis inexistentes brilhavam como um convite, fazia-a sonhar e estar permanentemente no mundo da …lua. Daí que o seu posto de trabalho, raro fosse o mês que não era posto em perigo.
Ao contrário, ela, na agência de publicidade, era rainha. Rainha do correio é certo, mas era correio azul.
Ansiava todos os dias por cartas de amor em vez das insípidas cartas comerciais. Não, não as achava ridículas. Mas não chegavam. Ia aos correios, recebia a correspondência e distribuía-a pelos empregados da agência. A agência já ganhara variadíssimos prémios e ela, sem ter contribuído directamente para essas vitórias, nunca era esquecida nos agradecimentos e nos convites para as festas, festinhas e festarolas que davam a pretexto de tudo e de nada.
Voltava para casa cansada mas feliz. Pronta para ouvir as queixas da mãe sobre a ervanária onde trabalhava, as do pai sobre a imobiliária que lhe pagava ao fim do mês, as da irmã que não tinha chegado a sair da secretária, se bem que tivesse passeado sobre o mapa da Austrália e falado como um aborígene sobre os trilhos do canto, as do namorado que estava farto de viajar com frequência para Barcelona, mas porque é que não o mandavam para outro lugar, já não podia ver tapas e as ramblas já tinham perdido o interesse, as do sobrinho que com frequência dava pontapés nos tomates do Rui ou do Rodrigo, porque eles não lhe emprestavam o Action Man e ele emprestava-lhes sempre os brinquedos que levava para o colégio, as dos amigos que ainda não tinham terminado o curso e aquela cadeira era tão difícil de fazer, era a última, mas isso não os animava, quando é que iam ao bowlling, ou então jantar, vais ao casamento da Raquel, …
E o telefone sempre interrompido e uma voz de mulher sempre a dizer que deixasse a mensagem no voice mail do número de telefone tal e de imediato outra mulher, não estavam combinadas com certeza, a dar a informação que afinal o voice mail não estava activado. E quem ligava desligava, e ligava mais tarde e a mulher, que monótona, a dizer sempre o mesmo. E umas vezes desistiam e outras, a persistência levava a melhor, e lá conseguiam falar com ela.
Os amigos que ficaram na Alemanha também telefonavam. A mãe, que muitas vezes os atendia, já tinha uma mensagem ao lado do telefone onde dizia que ela não estava, para ligarem mais tarde. Os sons macarrónicos voavam por essa Europa fora e chegavam aos ouvidos dos alemães que voltavam a ligar, muitas vezes para ouvirem a mesma voz de mãe que, como a outra do voice mail, parecia uma gravação, apenas interrompida por risos surdos. Antes de terem a ideia da folhinha de papel, a mãe gritava que ela NÃO ESTAVA, como se o facto de se falar uma língua diferente fizesse dos outros surdos. Um dos alemães já tinha aprendido algumas palavras em português, segundo ele, para falar com a mãe dela.
Era uma paródia.
Muitas vezes, sentadas as três na sala, depois de verem um filme pediam à mãe que lesse tudo o que aparecia no genérico, e a mãe lia, rindo à gargalhada e fazendo ainda pior, acentuava palavras que até sabia como se liam. Ou então ensinavam-lhe o refrão duma canção em inglês ou francês e a mãe repetia-o até à exaustão, repetindo os erros que sabia darem vontade de rir às filhas.
Um dia, uma das filhas foi presa.

1 comentário:

  1. Anseio pelo segundo capítulo! A última frase deixou-me água na boca. Está o máximo.

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