quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

A Casa do Embaixador

A casa do embaixador recebeu-nos calorosamente. Os candeeiros encimavam-se por cima das cabeças, de tal forma, que um distraído poderia pensar que o próprio sol ali morava mas que se encontrava tapado, ou quiçá constipado, pois não feria a vista.
Muita roupa preta feminina e muitos fatos cinzentos escuros masculinos misturavam-se de forma desordenada mas glamorosa. Pelo menos dois casacos de veludo cotelê, ambos azuis escuros, marcavam presença. De destacar ainda a exibição duma camisa, talvez comprada em Marraquexe, dourada com riscas pretas, para cuja confecção foram necessários vários metros de tecido. A embaixadora, ou melhor, a mulher do embaixador, com um laço na cintura, desembainhava um sorriso que nem na casa de banho devia desarmar, tal o vício de o mostrar. Um eyeliner negro e grosso tinha-lhe passado por cima dos olhos, tornando-os marcantes e, por umas horas, inesquecíveis.
Criados de casaco branco pululavam por entre os sofás e pechichés com tostinhas pingadas de caviar vermelho, minúsculos pedacinhos de carne fumada, tâmaras enroladas em bacon. No meio reinava uma lareira acesa cujo cheiro dava intimidade ao espaço, como se intimidade fosse necessária, pois os inúmeros convidados acotovelavam-se, tendo muitos deles optado por ir fumar no alpendre coberto de plástico, do bom, com vista para o jardim.
Numa sala contígua ao salão estavam dispostos queijos de diferentes cores e origens, o que pressupunha um aturada passagem pela secção de charcutaria do supermercado mais próximo; fatias de carnes frias, a bem da verdade geladas, e quase transparentes tal a forma como tinham sido acariciadas pela faca; havia ainda arroz de pato, com muito bacon e chouriço. Os doces eram imensos o que levava a pensar que quem organizou o jantar contou com uma cambada de gulosos.
As conversas multiplicavam-se em dois sotaques, com a palavra ‘doutor’ a ser repetida à exaustão. Quase todos, para não dizer todos, diziam uma coisa e pensavam noutra; alguns, se acompanhados de gente de confiança, lá se atreviam a comentar as formas com que Deus brindara esta ou aquela conviva, mas faziam-no com ar inteligente e até científico; parabenizaram-se os embaixadores pela decoração, pelas cores, pelo ambiente, com a ajuda do álcool que nos era oferecido e que, num primeiro momento nos auxiliava a admirar a beleza da residência e, mais tarde, nos ajudaria a esquecer a maioria dos pormenores.
Giravam os convivas em volta dos anfitriões, da autora do livro que se havia de apresentar antes da refeição, duma loura platinada muito pintada que por ali andava quando, de repente, uma figura imponente entrou na sala. Notou-se imediatamente o incómodo sentido pelos candeeiros, que ficaram nitidamente menos luminosos e secundarizados. Se não houvesse tanta gente na sala, a sombra da figura teria sido projectada até para lá do jardim. Ficámos siderados pelo brilho das lentes dos óculos que competiam com o brilho dos sapatos. A seu lado, duas figurinhas que pareciam retiradas dum álbum de cromos caminhavam meias perdidas, mas amparadas pela centralidade que a criatura exalava. A lareira tendeu a apagar-se e foi necessária a rápida e urgente intervenção dum dos empregados para a reactivar. As conversas esmoreceram perante aquela entrada imperial, medrosas de serem consideradas fúteis, ultrapassadas e frágeis. Tinha chegado Nuno Gonçalo, qual Condestável.
Quisera passar despercebido mas tal era impossível; ainda no carro e antes de entrar, tentara convencer-se a agir como uma pessoa normal, mas a superioridade estava-lhe no sangue, vinha de longe, de muito longe, era densa e compacta. Deu a honra de ouvir a sua voz a meia dúzia de seres, falando como um rei fala com os seus súbditos, fazendo o favor. As aias não o largaram. Falava depressa D. Nuno, e quem não o conseguisse acompanhar teria apenas que agradecer por ter tido o privilégio de o ouvir, ainda que nada tivesse entendido. Assim deve ser o Nirvana, onde se fala uma língua imperceptível, mas que todos daríamos graças a Deus por poder experimentar.
E comeu como os mortais, os queijinhos, os quentes e frios, bebeu e, constou-se, mas até hoje não se achou ninguém que tivesse presenciado na primeira pessoa, sorriu até, quando um grão de arroz que acompanhava o pato lhe caiu em cima do pullover de malha azul escuro, cujas mangas espreitavam debaixo do blusão. Sim, é verdade, usava blusão, dito de cabedal, como os generais usam a farda, mas sarabandeava no seio de Armanis e Hermenegildos Zegnas com o mesmo à vontade de quem é Boss...
E no salão ninguém o dizia por palavras mas todos o sentiam, que podia não haver apresentação do livro, que podia não haver jantar, que podia a chuva que caia lá fora entrar portas adentro e sentar-se nos veludos dos sofás e molhar as tapeçarias do chão, que podia a senhora da camisa às riscas douradas e pretas piscar-nos o olho, que nada importaria pois já tínhamos estado com Bonaparte.

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