Faz hoje anos que comprei uma casa. Foi comprada na sequência dum quase divórcio que só se concretizou alguns anos mais tarde.
O meu marido tinha a estranha mania de comer sempre uma garfada do prato dos outros e, pior ainda, de morar em casa alheia. Com muita dificuldade lá conseguimos comprar uma casa nossa. Quando ele manifestou que o pagamento da casa seria integral, sem pedido de empréstimos ao banco, fiquei estupefacta! Nós tínhamos dinheiro para comprar uma... casa??
Colchas e cortinados e toalhas bordadas nunca fizeram parte da lista de coisas que considerei necessárias; pelo contrário, sempre percorri lojas de todas as qualidades e feitios, com generosas ofertas em busca de cumplicidade e de conivência. Mas estavam quase sempre esgotadas... mesmo assim, fui feliz naquela casa.
Mandámos fazer prateleiras à medida de todos os espaços pequenos disponíveis e dispersámos a biblioteca pela casa: quem abria uma porta dava de caras com livros nos sítios mais impensáveis. Eram estantes de alfaiate, feitas à medida e provadas antes da utilização final. A casa tinha um cheiro visual que me agradava sobremaneira e o cadeirão da sala, ao lado da lareira, deu-me momentos de leitura ímpares.
A cozinha era digna dum restaurante: enorme, e proporcionava-se como lugar de encontro entre amigos. A sala, o escritório, os quartos, as casas de banho, os corredores, tudo era, aparentemente, ideal. Só havia um problema: os inquilinos não tinham nascido para viverem um com o outro. O meu filho adorava a casa por ser grande e pela sua compleição. Eu adorava a casa por ser minha e por, finalmente, lá poder fazer o que quisesse. O meu marido adorava a casa por ser sinónimo de dinheiro.
O meu marido não nasceu para viver, nasceu para morrer e, pelo menos naquela altura, cada dia era um dia a menos nessa espera.
Eu achava que a casa nova o ia tirar dessa angústia permanente, mas isso não aconteceu. No dia que a comprámos, dia também do aniversário dele - hoje - dormimos logo lá: levámos uns colchões, dormimos lá os três e eu convenci-me que aquilo era um marco de mudança na nossa vida. Mas enganei-me. Não tardou nada que viesse à tona o destino dele, como se cada um de nós estivesse destinado a fim diferente... Mas entre o agora e amanhã há que respirar e ele esquecia-se disso, parecendo sempre suster a respiração e guardar o oxigénio para uma melhor oportunidade.
Penso que hoje ele se alegra por lhe ter feito o maior favor da vida dele: divorciar-me. O amor que me declarava apenas em alturas de crise foi esgrimido quando lhe anunciei que sairia de casa. Prometeu-me também que iríamos de férias onde eu quisesse, promessa recorrente sem nunca ter percebido que tínhamos todas as condições para estarmos sempre de ‘férias’, bastava querermos e não vivermos cada minuto obcecados com dinheiro e com o fim da vida.
A obsessão com o dinheiro foi levada a extremos que, contados, ninguém acreditaria e por isso não conto...
No divórcio ele ficou com a casa, a casa cuja janela da cozinha emoldurava o palácio da Pena, a casa onde ainda moram as ‘minhas’ estantes, residência temporária dos meus livros, livros que, por serem livros, têm muito que contar e, estes em particular, ainda têm mais pelos diferentes sítios onde já viveram.
Ontem fiquei a saber que a luz foi cortada na casa, por indicação dele, que vive com outra pessoa e não precisa daquele espaço. Na verdade, acho que nunca precisou, foram apenas ilusões.
Da minha dificuldade em fixar datas exceptuam-se alguns aniversários, um deles o da aquisição desta casa, onde eu depositava tantas esperanças... vãs, como se veio a confirmar. Esta casa era sinónimo de ultrapassagem de dificuldades em nome do amor. Não sei que raio de romantismo me levou a acreditar nisto, mas a verdade é que as pessoas acreditam nas coisas mais bárbaras, que depois lhes dão as maiores desilusões.
Aquela casa, não sendo o meu farol, era uma bóia de salvação que, afinal, não aguentou o tempo suficiente até chegar a terra firme. Aquela casa assistiu a muitas discussões e nela foram escritas inúmeras cartas dirigidas ao meu marido, em longas noites no sofá (feito à medida) e que me serviu de cama tantas vezes que lhe perdi a conta. As cartas eram manifestos de vida, campainhas que fariam acordar um vulcão, mas que se mostraram infrutíferas. Aquela casa assistiu a chuvadas de lágrimas minhas por incapacidade de lhe fazer ver coisas simples, como por exemplo, que temos que aproveitar a vida... enquanto estamos vivos!
Sempre fiz questão de comemorar o aniversário dele e cheguei a fazer-lhe uma extraordinária festa surpresa, à qual ele não achou muita graça. Eu ficava sempre na dúvida se ele não queria comemorar para não marcar mais um ano na sua caminhada para a velhice, que o arrepiava, ou se era para não gastarmos dinheiro. Concluo que era por ambos os motivos.
Nessa noite comemorámos o aniversário num jantar – 6 pessoas – e foi das poucas vezes em que não tivemos que escolher em função do preço, coisa rara...
Mas, seja como for, hoje é o aniversário do Pai do meu filho e isso é para mim motivo de grande alegria.
A casa... a casa é um objecto...
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Triste, mas demonstrativa de tantas histórias semelhantes....Subscrevo inteiramente o último parágrafo. As casas são objectos não se ferem.
ResponderEliminarFelicidades, muitas......