Saratov…sem acentuar ou carregar em letra alguma…devagar, como quem quer perpetuar uma semana de estadia na eternidade de um nome.
Acerca da eternidade dos nomes na Rússia, muito havia a dizer, mas agora fala-se de Saratov. Fala-se e fala-se baixo, como toda a gente nesta cidade à beira Volga plantada.
Assim que entramos na cidade, somos marcados pela dicotomia silêncio/ruído: as pessoas fazem tudo silenciosamente, sem ruído, como se não quisessem acordar os prédios ou incomodar as estátuas. Sussurram entre elas, não se lhes ouve o timbre da voz, o que contrasta violentamente com a perpétua música que se ouve nas ruas, nos cafés, nos táxis, nos mercados, em todo o lado. Ao ouvir esta música que parece nascer do ar, o exercício de voltar atrás no tempo não se nos afigura muito difícil: altifalantes por todo o lado, propaganda a ser difundida, não esquecer quem somos e quem não são os outros.
E é assim que numa rua enorme, cheia de pessoas, com imenso comércio, se ouvem as conversas de três portugueses, estes decididamente, sem saberem falar baixo.
Regressemos ao presente e entremos no Hotel Volga: a porta de entrada só a vimos quando saímos. Sim, quando saímos e não quando entrámos. Estou certa, ainda não tinha bebido uma gota de vodka! Tendo em conta que a parte da frente fica numa rua pedonal, o nosso transporte deixa-nos nas traseiras. Esta localização coloca-nos estrategicamente numa óptima posição: estamos na rua principal, rica em comércio. A cada passo uma livraria de rua, com livros novos e usados: estaremos na feira do livro de Saratov? Não, é assim todos os dias. Entre as bancas, antigas divas mostram que a sua voz ainda é o que era, deixando-nos de boca aberta. Um pouco adiante, alguém toca violoncelo, obrigando-nos a abrandar: estamos num filme, pois só nos filmes toda a acção se passa acompanhada com música, música deliciosa que parece estar a ser acabada de compor só para nós. Adiante. A acção do filme centra-se em nós, pois a música acompanha-nos sempre, ao longo do caminho, enquanto passamos pelos teatros, pela escola de música e quando nos quedamos frente à estátua de Lenine, numa enorme praça ladeada com placas onde se lê os nomes dos mais ilustres cidadãos de Saratov, no campo das artes, das ciências, das técnicas.
Impressionou-nos a arquitectura urbana, principalmente as praças: são enormes e existem apenas para serem utilizadas por pessoas que, assim, sentem a cidade como sua, podendo dar-lhe a utilidade que quiserem. Confrontados com espaços daquela natureza e transportando-os para Portugal, imaginámos de imediato grandes parques de estacionamento…Vivam as praças livres, a cidade devolvida à cidade!
A água do Volga empurra as pessoas para o centro da cidade, apesar da existência de um passeio marítimo, com cerca de três km, ao longo do rio, denominado Passeio dos Cosmonautas. Do outro lado do Volga, a cidade de Engels olha-nos de forma distante. Talvez porque Saratov reclama para si a glória de ter tido entre os seus habitantes o primeiro homem a viajar no espaço mas foi em Engels que ele aterrou na sua primeira missão.
De repente, ao virar duma esquina, um edifício com ar de planetário, anuncia-nos a presença da nobre arte circense: um circo. Não, não é uma tenda de circo, é um edifício onde artistas de circo actuam e diariamente fazem o seu espectáculo. O circo é contemplado pelo mercado, exactamente em frente, com uma pequena praça de permeio, cuja aprazabilidade nos faz lembrar uma enorme pista de dança onde se espera que, a qualquer momento, o circo convide o mercado para dançar, ao som da eterna música, para completo delírio dos observadores.
No interior do mercado vende-se peixe, carne, fruta, flores e os eteceteras normais dos mercados. Os nossos olhos destacam obrigatoriamente as verdadeiras torres amarelas que se erguem um pouco por todo o lado: manteiga. Mais uma vez voltamos ao passado e se a queremos comprar temos que dizer qual a quantidade pretendida. Quando vamos pagar ninguém puxa pela calculadora: as contas são feitas num ábaco.
Dentro e fora do mercado, fritadeiras enormes chamam a atenção dos nossos narizes, obrigando-nos a provar uma espécie de enorme rissol de massa com carne muito condimentada, sem ser picante e que nos serve de almoço.
Na parte exterior do mercado, é de realçar as vendedoras de cigarros (mais adiante voltaremos a falar delas…), de cervejas e, principalmente, de sacos de plástico: ou os levamos connosco ou trazemos as uvas (deliciosas!) e as batatas na mão.
Se bem que o nível etário da população da Federação Russa esteja a subir, em Saratov, a maioria dos rostos são jovens. Jovens e bonitos. Toda a gente é bonita e independentemente do período que política e economicamente atravessam, não têm um ar fatalista, antes pelo contrário. Apercebemo-nos dum grande cuidado com o aspecto o que ainda realça mais a sua beleza. As mulheres usam saias muito curtas, saltos exorbitantemente altos, lábios pintados e rostos sorridentes.
A simpatia parece ter atacado a cidade: todos nos brindam com um sorriso e ouvimos spaciba só pela nossa presença.
Mas falemos dos cigarros: debaixo de tecto é quase impossível fumar. Nos cafés, em quase todos os restaurantes, nos átrios dos hotéis, na Universidade, no perímetro aproximado de algumas igrejas mesmo ao ar livre, é estritamente proibido fumar! Resta-nos o nosso quartinho de hotel e o meio da rua. Bem feito! Ouço dizer e sinto pensar.
No centro da cidade somos atraídos por um grande parque com árvores cuja folhagem vai do verde azeitona ao amarelo sol, assim como os que lá passeiam vão dos avós aos netos, sentados nos bancos a conversar, no parque infantil ou só a passear enquanto ouvem um dos mais deliciosos barulhos da natureza: o som das folhas outonais a serem pisadas e que constitui uma sinfonia única.
Saindo do parque em direcção ao centro da cidade damos de caras com Tschernysch’vsky. Um Tschernysch’vsky de pedra com olhar duro como só ele, o pensador que nos deixou uma perspectiva da democracia grega contrária aquela que nos é ensinada. Ao lado da sua estátua, espera-nos uma igreja, ortodoxa, pois claro. À primeira vista parece-nos um bolo, uma construção de chocolate branco, enfim, algo delicioso para todos os sentidos. Lá dentro acendem-se velas enquanto decorre o serviço. É pequena, mas é uma igreja. Não tem bancos nem cadeiras e as mulheres estão todas de cabeça coberta, enquanto fazem o sinal da cruz de segundos em segundos. Murmura-se o cântico, o acompanhamento ao padre que, no interior do santo dos santos, local onde só ele pode estar, rigorosamente mais ninguém, vai dizendo a homília, horas seguidas se necessário for, na tentativa de confortar os fiéis.
Saratov, como qualquer cidade que se preze, tem vários locais de culto. As igrejas, de cúpulas douradas, dominam sobre o parque habitacional algo degradado, essencialmente nos arredores do centro, o parque automóvel não muito melhor e a rede viária a sustentar velocidades máximas perto das nossas mínimas nas auto-estradas. Muita gente se questiona porque é que o dourado das cúpulas das igrejas não desaparece ou enferruja. Fácil: são em ouro!
Conseguimos ter uma magnífica ideia do conjunto da cidade, com as cúpulas das igrejas a brilhar, como estrelas mais ou menos distantes, no firmamento repleto de casas e ruas largas, sob o olhar atento do Volga e de Engels, quando visitamos um enorme parque, na parte alta da cidade. Neste parque encontram-se vários museus, mas todo ele pode ser considerado um museu militar: aviões de diferentes espécies, helicópteros, submarinos, tanques, mísseis e eteceteras militares, deixam-se ver à luz do dia, com o devido acompanhamento de mais pequenos documentos museológicos que se encontram em pequenos edifícios ao longo do parque, cada um, um museu.
Neste parque pode-se ver um enorme monumento, um memorial, com uma enorme chama acesa 24 horas por dia. Apesar de, ao lado, estarem os nomes dos heróis da Segunda Guerra Mundial, não se deve confundir com o Monumento ao Soldado Desconhecido que está no cemitério de Saratov.
Curiosamente, viemos a este local duas vezes: uma com um guia, de carro, pelo melhor caminho, outra, pelos nossos próprios meios, por caminhos paralelos, metade a pé, metade de autocarro no início da hora de ponta. Aconselha-se vivamente a segunda alternativa: sente-se o chão, a falta de passeios, o tropeçar do autocarro, o cheiro das coisas e das pessoas, anda-se a pé, no meio do mundo, agora consubstanciado numas janelas com cortinas. Não, não estamos na nossa sala a espreitar a televisão. Estamos aqui. O aqui existe. Quando nos aventurámos sozinhos, regressámos ao centro da cidade de táxi, que o mesmo é dizer de carro: qualquer carro é um táxi, basta levantarmos a mão e o primeiro carro parará para nos dar uma boleia…paga. O preço é muito inferior à tarifa cobrada pelos taxistas e se a polícia nos mandar parar apenas temos que confirmar que somos amigos do condutor! Como é óbvio, convém perceber um pouco da língua, uma vez que ninguém fala inglês. Mesmo em Moscovo, a linguagem gestual é muito utilizada e doses de paciência são gastas num abrir e fechar de olhos.
No meio de inúmeros entretantos seria impossível e impensável não visitar o Museu da Região de Saratov, onde cenas da vida quotidiana se misturam com armas, elmos e vestes de várias guerras, as guerras sempre a marcarem presença.
Ao lado, a Igreja da Santíssima Trindade. Lá dentro…chora-se.
Num dos extremos da cidade, ergue-se a Universidade Técnica de Saratov, com cerca de dezasseis mil estudantes.
Outra coisa impossível foi não comprar um samovar. Mas as minhas malas estão cheias de casacos para o frio e luvas e cachecóis e camisolas e tudo! Como o vou levar? Tentava lembrar-me de ouvir dizer que Deus era grande e estava em todo o lado. Estaria disponível para me ajudar? Eu não sabia, mas tudo era possível pois o meu maior espanto fora encontrar uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, na rua principal de Saratov, à entrada de uma igreja! O mais ateu não pode deixar de abrir os olhos, esboçar um sorriso, sentir um calor que o leva inconscientemente a tirar o gorro da cabeça, que o protege da temperatura por vezes negativa.
Foi a maior surpresa, caminhar, olhar para o lado e encararmos com uma réplica da imagem da santa mais adorada em Portugal, com peregrinos do mundo inteiro que perante ela se ajoelham e, de repente, ali está ela, com direito a placa com o nome e tudo, em cirílico, é certo, mas o que também só prova que a fé não tem fronteiras.
As escadas do templo são descidas (a igreja fica em baixo) a correr, entramos com o chapéu na mão e o coração lá dentro e o silêncio ritmado do terço impede-nos de respirar. Saímos às arrecuas sem perguntar como, porquê, quando, enfim, o que faz aqui a Senhora de Fátima? Novas tentativas mostraram-se infrutíferas para o sabermos. Talvez o divino tenha agido, de forma a ficarmos com vontade de regressar a Saratov, para procurarmos respostas a perguntas nem sempre formuladas.
Saratov...
terça-feira, 12 de janeiro de 2010
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Tantas vezes....vezes sem conta que ouvi a história! A história do samovar! A história de um casaco que teima em não entrar na mala do viajante....a história vivida no aeroporto! De facto, viajar em determinadas condições não é para toda a gente.....uma viagem programada com hotel de luxo e carro à porta, onde a maior parte do tempo é gasto na piscina do hotel e de preferência com fotos para dizer que lá estivemos... que somos gente fina, de que serve? E a narração da aventura? O que fica da viagem? Fotos! Faz-se montagem..... *-)Boas viagens....
ResponderEliminarconheço bem saratov, já estive varias vezes, em sitios que para a maior parte dos turistas nao veem, tudo devido a ter familia lá, pois a minha mulher é de lá natural, pro ano volto, um abraço
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