segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Lisboa, 12 de Janeiro de 2005

João
Tenho sentido saudades tuas.
Estamos longe um do outro, como o sol da lua. Cada momento que passamos juntos, parecem entardeceres, quando a lua surge antes do sol desaparecer completamente. Parece que se encontram mas, na verdade, é uma ilusão, não se vêm, apenas se olham.
Aceito que a culpa é maioritariamente minha. Mas as ajudas também não são muitas. O teu olhar sobre mim é uma espada que corta e me fere. Hoje quando saí, depois de te ter visto sentado na cama, nu, vi a tua nudez quase como uma oferenda desesperada de quem se desfaz de tudo e diz, aqui estou, sou assim, toma-me. O teu olhar, ainda ensonado, guilhotinou-me a razão e estive quase a voltar atrás e não vir trabalhar. Depois pensei, eu fico, fazemos amor, choramos, ficamos em silêncio, dizemos que temos tudo, que não nos falta nada, que era suposto esta semana ter sido de lua-de-mel, concordamos que estamos a morrer de saudades do Duarte, manifestamos a intenção de não nos levarmos outra vez nesta onda, falamos das férias, planeamos dar a volta ao mundo se for preciso… para aguentarmos até à próxima vez em que eu passe temporadas a chegar à cama e adormecer, em que tu manténs o teu silêncio, te recriminas por não estares com o Duarte, em que nos zangamos por causa das prendas que ele insiste em ter, em que jantamos à quarta feira com os teus pais e aos domingos com os meus, em que eu fumo um cigarro no jardim, com a Carla, falando sempre das mesmas coisas depois de tu lhe teres perguntado pelo Nuno e de ela ter respondido que acha que está bem, provavelmente está não sabe bem onde, em que convidamos a Susana e o Francisco para jantar e falamos de imobiliário e de telemóveis, em que eu maltrato verbalmente a minha empresa, em que não conversamos seriamente sobre nada, em que adormeces no sofá, em que vamos beber uma imperial ao bar, em que tu estás sempre em desacordo com os pratos que eu escolho no restaurante, em que penduramos as facturas no frigorifico, presas com o íman da Minnie, a única coisa que eu comprei na Disney porque tu não achas bem gastar dinheiro inutilmente, em que tu adias para nunca a visita à tua avó e às tuas tias, em que adiamos eternamente as obras na casa do Algarve, porque sabemos que é preciso gastar dinheiro, mas nós já o gastamos a guardá-lo e não falamos do assunto, em que raramente fazemos visitas seja a quem for e são sempre rápidas pois a paciência esgota-se antes de se abrir, em que não convidamos ninguém para nossa casa, em que não compras roupa nem sequer nos saldos, porque mantemos a determinação de não ir a centros comerciais aos fins de semana e já gastaste o dinheiro a guardá-lo no banco, em que eu te obrigo a despachar cedo ao fim de semana e tu te queres levantar tarde para fugires ao stress quotidiano, em que o Duarte se recusa a sair de casa e quer ver televisão, em que aguentas, sempre em silêncio, os meus amigos, em que vais à praia e ao cinema obrigado, até à próxima vez em que eu te escreva uma carta! Mais uma depois de todas as que já te escrevi…
Será que um dia vai ser diferente? O que temos que fazer para apressar esse dia? Quando chegará esse dia? Esse dia, efectivamente, chegará?
Toda a nossa vida, da qual devemos dar graças, é certo, está programada ao centímetro. Sabemos antecipadamente o que vai acontecer a qualquer dia da semana. Não quero ser divinamente castigada com nenhuma tragédia que me altere os dias, desorganizando-me a vida, não é isso. Mas estamos cansados, eu sei que estás, de ver eternamente o mesmo filme.
Sempre achei que um dia não ia querer ser exactamente como os meus pais, mas nós estamos a tornarmo-nos como os teus! Somos um relógio que funciona muito bem: minuto a minuto, hora a hora, sempre a rodar no mesmo sentido, a passar nos mesmos sítios, a ver os mesmos números.
Temos tido sorte na vida, dirá qualquer um. Correndo o risco de virar o feitiço contra o feiticeiro, eu digo que vale a pena correr riscos.
Eu não quero ser desenhadora. Sempre o soube mas é daquelas verdades interiores difíceis de assumir. Agora assumi isso, só ainda não arranjei coragem para seguir outro caminho, que procuro incessante e desesperadamente.
Na verdade, não acredito que alguém me conheça. Ninguém percebeu o que significou para mim ter percorrido aquele desfiladeiro, sozinha, magoada, com dores, ninguém nunca viu que me faltavam lágrimas, muitas lágrimas, que eu lá tinha deixado e ninguém se questionou sobre o significado delas. Porquê? Porque todos estão habituados a ver com os olhos e não com o coração.
Houve um erro qualquer e eu vim aqui parar, mas não pertenço a este local. Ninguém me explica nada e eu também não sei onde devo estar, por isso procuro, procuro e continuo a procurar. Suponho que quando encontrar, perceberei que é aquilo que procurava. É assim como uma peça de puzzle que encaixa com algum esforço num espaço vazio, mas o desenho não condiz e, decididamente, não é dali. Quando se olha com os olhos, é. Quando se vê com o coração, não é.
Mas por vezes, João, tenho a sensação que nunca me esforcei, que posso fazer mais, que posso fazer muito. Onde, como, quando, quanto, porquê? Não faço ideia. Tudo isto é um desabafo, porque eu sei que vou morrer aqui nesta prisão, sem ter cometido crime algum. Ninguém acorre em minha defesa e eu aqui dentro nada posso fazer. Chamam-me agressiva, bruta, choram com as coisas que eu digo, não sentem que o meu peito explode de ter que representar um papel que não é meu, aprisionada, como se todos falassem estrangeiro à minha volta, e eu me sentisse revoltada por todos acharem que eu devia ser feliz e estar contente: pode ser uma prisão, mas é de luxo, tem não sei quantos quartos, dois carros, posso sair em liberdade condicional de manhã e voltar à noite, tenho televisão, livros, cães, faço o meu próprio comer, trabalho, dão-me dinheiro em troca, tenho marido escolhido por mim e um filho que nasceu quando eu entendi… é preciso ser-se louca para querer outra coisa e chamar a isto uma prisão. Talvez eu esteja mesmo a enlouquecer…
Ajuda-me.
Com amor e carinho ( que te manifestarei hoje à noite…)
Camila

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