segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

A rapariga que não gostava de livros com as capas dobradas III

O Robin era uma pessoa muito especial. O espaço por ele ocupado era muito em metros cúbicos e em espaço mental. Falava de tudo, estilo Vasco Graça Moura ou Vasco Pulido Valente, mas não se chamava Vasco. Ninguém se aborrecia ao pé dele por falta de conversa e era um contador de anedotas exímio. Barcelona era um dos seus assuntos favoritos, embora estivesse farto dela, pois conseguia sempre provocar inveja, já que descrevia cantos e recantos da cidade, como se lá tivesse vivido toda a sua vida.
Quando soube que ela ia fazer um estágio em Hannover foi ao gabinete Erasmus da faculdade e inscreveu-se, tendo entrado imediatamente em contacto com um professor qualquer que, segundo ele, estava a fazer investigação de ponta, mas nunca explicou bem qual era, e foi a correr ao seu encontro para a capital da Baixa Saxónia. Arranhava o alemão, mas quem o ouvisse, diria que era nativo. Ninguém o percebia.
Tinha um sonho, como o outro. Pedia-lhe ajuda para o concretizar mas ela, lá de baixo, dizia-lhe que esperasse. Irem viver para a Malveira da Serra e criarem animais, tudo bem, a perspectiva até era agradável, o local era sossegado, viriam a Lisboa a banhos de cultura uma ou outra vez na semana, enfim mas, e a sua família, com quem se zangaria, com quem gritaria? Ele que esperasse e tivesse calma. E ele tinha. Toneladas de paciência.
Tinha também toneladas de familiares. Encontravam-se em casamentos e baptizados. O último baptizado onde tinham ido tinha seiscentas pessoas e eles não chegaram a ver o petiz, em roupa branca comprida, com touquinha de laçarotes e ar de quem não percebe porque é que não podem ir para casa descansar e livrarem-se de todas aquelas pessoas. Afinal, eram só seiscentas.
Quando falavam do casamento, ele dizia logo que não iria aquela catrefada de gente, e ela e a irmã gozavam dizendo que os veigas e os viegas, e os vasconcelos com dois éles, e os betencourtes com três tês, para além dos corte-reáis, e dos não sei quê e dos não sei que mais, bem, esses teriam que ir. Para além da família chegada, claro. Mas só a mais chegada, condescendia. Bem, pensava ela, são os teus pais que pagam, que os meus, só pagam para a meia dúzia de gatos que hei-de convidar. Tudo isto era pensado se os pais de Robin viessem ao casamento, o que teria poucas probabilidades de acontecer pois, recentemente, tinham surpreendido toda a gente no dia em que declararam que iam viver com um irmão há muito radicado na Austrália e fora a sua própria irmã que lhes preparara a viagem na ‘sua’ agência, com muito amor e carinho, como se fosse ela própria a ir visitar cangurus e koalas.
O Robin entrava em todas as conversas, fossem de pessoas mais velhas ou mais novas, em português, castelhano e catalão, inglês, francês, alemão, claro, tinha um jeito especial com as crianças, percebia de animais, plantas, construção civil, touradas, geografia, história nacional, europeia, mundial e etc., gestão de empresas e recursos humanos, astronomia, gastronomia, e mais mil coisas acabadas ou não em ia.
Tinham em comum o gosto pelo jogo: cartas, trivial, jogos sociais, tudo onde alguém pudesse ganhar ou perder. Um dos jogos favoritos deles era o Personagem Incógnito, que consistia em escolher uma personagem real ou não, morta ou viva, homem ou mulher e escrever esse nome num papel, que era colado com fita cola, na testa de quem tinha que adivinhar quem era, através de perguntas às quais os outros iam respondendo. Resultado, sempre que alguém entrava na sala onde se jogava o Personagem Incógnito, dava de caras com quatro ou cinco pessoas todos com papelinhos colados nas testas, tentando adivinhar quem eram. Mas as jogatanas de cartas eram as preferidas, especialmente rami. Chegavam a coleccionar cadernos onde escreviam as pontuações de cada um e que, a cada jogo, recordavam, sendo ela quem conseguia sempre maiores e melhores pontuações.
De vez em quando iam a casa da irmã e jogavam jogos de computador ou faziam loucas corridas de carros na televisão, sem levantarem os rabinhos, respectivamente de príncipes e princesas, dos sofás. O sobrinho queria sempre participar e eles inventavam sempre qualquer estratagema para que se interessasse por qualquer outra coisa. A irmã ajudava-os, brincando com o filho, pois odiava estes jogos, ficando-se pelas cartas e pelo trivial.
O Robin era já um elemento da família e tinha sempre lugar marcado fosse para o que fosse: festas familiares, férias, fins-de-semana no Alentejo, casamentos e funerais e eteceteras.
Quando soube da prisão, pensou que estavam a brincar com ele e só acreditou quando falou com o cunhado.

Sem comentários:

Enviar um comentário