terça-feira, 19 de janeiro de 2010

1 de Agosto de 2006

Querida Laurinda
A descrição das suas férias foi uma leitura quente, estilo Serões da Província que, de tão simples e despretensioso, parece irreal: como se podem arrancar tantas sensações diferentes dum espaço, supostamente, tão pequeno, onde nada cabe? Por isso a terra de cada um é uma espécie de coração onde cabe tudo o que lá quisermos pôr: grandeza, numa povoação com meia dúzia de casas, cultura que, ao contrário do que a maioria das pessoas pensa, não tem a ver com analfabetismo ( a minha avó era analfabeta e não deixava de ser uma pessoa muito culta, sensível e plena de qualidades), segurança, por estarmos entre os nossos, mesmo que nem lhes saibamos o nome, calor, mesmo que a temperatura desça abaixo dos zero…
Mas porque é que toda a gente não pensa o mesmo, não faz esta experiência, para constatar o resultado, para provar a calma, deixar-se tactear pela chuva que caí, sem recorrer de corrida ao guarda chuva, saborear conversas de café e de lareira, com pessoas, cujas problemas nos transportam para outras temporalidades, deixar-se envolver pelos cheiros próprios da anti-cidade, o fumo das lareiras, o das queimadas, dos fornos de carvão, da merda das vacas, a lama, feita do pó fertilizado pela chuva.
E os barulhos? As rãs a coaxar a noite toda, os pássaros no telhado, felizes, em família, fugindo dos gatos, magros ou roliços, que fazem a vida doida aos cães, que fogem dos cavalos e mulas, conduzidos pelos homens, a velocidades que levantam o pó das ruas e nos levam a dizer, ali vai o Zé da não sei quê, que volta e meia pára para um copo e ai vem mais uma daquelas conversas que ficam muito mais no nosso peito, do que na nossa memória. A propósito, lembrei-me de duas tiradas fabulosas, que presenciámos na última vez que fomos ao Algarve. O João e o Duarte foram cortar o cabelo e um velhote que lá estava à espera, virou-se para a cabeleireira e disse-lhe:
-Cuidado, não lhe cortes a orelha, senão tem que sair daqui em ombros!!!
Outro, também na cabeleireira, tinha combinado ir cortar o cabelo num certo dia, mas não foi. Passou e meteu a cabeça na janela, para cumprimentar os presentes. A cabeleireira para ele:
-Então não disse que vinha cortar essa gadelha?
Resposta do sujeito:
-Tu disseste que só podia vir quando não estivesse bêbado e ainda não me passou a bebedeira…
-Há três semanas…?
Claro que, imediatamente, se estabelece um diálogo, de igual para igual, com todas as pessoas presentes e, no meio dos cortes de cabelo, há tempo e espaço para um bocado de pão com chouriço, que até parecia mal não se aceitar, muito obrigado, é delicioso, e o corte de cabelo já está feito há mais de meia hora, mas ali se está sentado, até…
SOCORRRRRRRRO!!!!!!! Tirem-me daqui!
Algemada pelos horários, torturada pelas greves, presa pelas alturas dos andares, de telemóvel na mão como se fosse uma caçadeira na selva, atiro a um e a outro, porque estás atrasado, porque não se fez isto, porque se fez aquilo mal, anda-me buscar, anda-me levar, e milhões de eteceteras que martelam na minha cabeça, tentando furar como se eu fosse pedra dura e não um regatinho que só quer descer pela vida, ampliando e estreitando margens de acordo com uma geografia flexível, que nos dá espaço para nos movimentarmos.
Sonhas demais, dizem-me. Talvez, mas não desisto e vivo a não desistir. Isto não pode ser um matrix, tem que haver qualquer coisa mais, para quem tente desesperadamente encontrar o que procura, tem que haver um final feliz.
Desde que aqui estou tenho aprendido muitas coisas, sem as quais passava muito bem, como por exemplo a gostar de coisas às quais eu antes não dava importância e agora dou. E fico furiosa comigo, como é que isto pode ser importante para mim…? E quero fugir, para não pensar nestas coisas, banalizar-lhes a importância, voltar a ser indiferente a exigências quotidianas estúpidas que, de tanto me dar com elas, me fazem falta e me deixam a pensar.
Receba um abraço caloroso da sua
Camila

Sem comentários:

Enviar um comentário