terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Lisboa, Agosto de 2005

Querida Laurinda
Deve achar que eu não tenho memória e não guardo na lembrança as pessoas a quem um dia me dei e que um dia me deram quem elas eram. Tem razão, sou uma ingrata e muito mais. Temo que qualquer epíteto seja pior que o antecedente. Porém, lembrar, lembro-me, isso posso garantir-lhe.
Lembro-me de si cada vez que olho para a pulseira que tenho no braço, onde está pendurada uma esfera com bolinhas de todas as cores e que a Laurinda me ofereceu. Lembro-me cada vez que ponho os brincos, lembro-me cada vez que me apercebo que foi um erro sair daí.
Falar nunca foi o meu forte. Acho sempre que me perco em conversas parvas ao telefone, a falar do que não quero com tons de voz que não são meus, como se não fosse eu. As perguntas repetem-se e, acredite-me, desde que vim para aqui foi como se tivesse feito uma espécie de voto de silêncio: falo cada vez menos, com cada vez menos pessoas. Toda a gente me aborrece a pontos inacreditáveis: só de pensar que tenho que falar com pessoas, conhecidas ou não, é uma angústia, um martírio, uma aflição que não sei explicar. Por isso não mo peça.
Eu é que peço desculpas. O meu marido cansava-se de dizer para fazermos um jantar, agora já nem isso. Até com ele eu mantenho o voto de silêncio. Encontramo-nos pouco e os encontros decorrem rapidamente. Como se vivêssemos num hotel e nos cruzássemos no átrio. Nem sequer ao pequeno almoço. Dormimos juntos sim, mas as minhas noites são povoadas de sonhos estranhos cansativos e, para variar, silenciosos. Não, não me diga para ir ao médico. Por vezes fico acordada a ouvir-me respirar. Ainda estou viva. Espero. O quê? Não sei e nem sei se um dia saberei. Não pertenço aqui. A minha irmã proibiu-me de dizer que sou infeliz, porque tenho tudo. Na verdade não sou capaz de dizer o que me falta. Mas falta.
O trabalho é muito, mas não é disso que me queixo. Antes pelo contrário, faz-me bem. Claro que vou tardíssimo para casa, claro que o Duarte fica com os meus pais, claro que passo os fins de semana com ele, malditas compensações, claro que me martirizo, claro que não passo um minuto em casa, claro que não sei mais o que está claro.
Mais uma vez, desculpe. Estou para aqui a dizer disparates, coisas sem sentido e peço-lhe que não me telefone depois de ler esta radiografia minha. Não saberia o que lhe dizer. Aprofundaria esta sensação de estupidez que me invade.
Estou só a expor-me e sei que este ‘só’ é muito grande, porque é algo difícil de fazer. Mas penso que há momentos em que tem que ser feito e há pessoas capazes de escutarem.
Porque me dirijo a si e não a outra pessoa? Não sei muito bem, como também nunca soube o que me levou a sentir uma grande empatia consigo desde o minuto em que nos conhecemos, naquele café ao pé da antiga biblioteca, onde nos vimos pela primeira vez e quando eu tive a sensação que a conhecia desde sempre, como se fosse um outro eu, não sei explicar.
Gostava de não ter tantos defeitos e, embora possa parecer ambíguo, gostava de ser diferente, de ser mais normal
Aceite um abraço da sua amiga
Camila

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