segunda-feira, 26 de abril de 2010

Três sonhos e não eram de Natal

Na mesma semana tive três sonhos estranhos: num relatava o próprio sonho, que ia acontecendo um segundo antes da minha voz o descrever. Via-me em pano de fundo em cima à esquerda, com uma nuvem à volta, como aquelas fotografias de casamentos dos anos oitenta e noventa em que os noivos, ou um convidado especial, aparecem emoldurados por um coração de fumo colorido. Concluo que os ecrãs têm, de facto, um grande impacto na nossa cabeça: o meu sonho era formatado para ser visto num ecrã, não para ser visto ponto. Nem para ser lido.
Havia nele, no sonho, um triplo estar: eu estava no acontecimento, no sonho em si que não sei qual era; era a relatora do acontecimento, e eu outra vez a ver-me relatar. Bem, ainda havia eu a dormir, suponho.


No outro sonho, também havia dois eus e um deles reclamava com o outro pois não prestara atenção ao que sonhara. Então, coisa inusitada, o primeiro eu, qual Alfredo projeccionista, passava o sonho outra vez, dizendo com voz compreensiva e de perdão que estava bem, que tivesse calma que já o ia ver outra vez...
A recordação da acção deste sonho em concreto é tão precisa como a do primeiro: zero!

O último foi um desassossego e o único do qual me lembro da acção: os piercings do José Luís Peixoto falavam comigo todos ao mesmo tempo. Eu entrava no comboio da estação do Rossio e alcançava um Destak para me entreter na leitura das notícias que já tinham sido, pois era quase noite. O José Luís sentava-se em frente a mim e adormecia ainda no túnel do Rossio. Durante aqueles minutos na escuridão do túnel lia e ouvia um varrer de campo, como um rádio mal sintonizado, e quando o comboio desembocava em Campolide percebia que os piercings se mexiam transformando-lhe a cara em caretas ora cómicas ora assustadoras e o vago e indefinido barulho que ouvia eram as suas vozes. Fiquei estupefacta e cheia de medo até que um deles falou mais alto e pediu aos outros para se calarem. O medo passou a fascínio enquanto me sentia ridícula por olhar fixamente um homem a dormir. De boca aberta. O piercing disse que era o mais velho e perguntou-me se o entendia. Vi-me a abanar a cabeça afirmativamente e ele explicou que fazia aquela pergunta pois era português e nem toda a gente com quem já tinha falado falava a língua.
- Ele não acorda? – perguntei eu.
A resposta a esta pergunta foi um autêntico carrossel de movimento em que todos pareciam dar cambalhotas voltando a desfigurar-lhe o rosto, ou seja, um categórico não.
- Já falaram com outras pessoas? – perguntei eu evitando qualquer pronome pois não sabia como se tratavam os piercings, se por tu se por você.
O espanto não podia ser maior quando o piercing me disse que me deixasse de perguntas pois ele tinha uma coisa urgente para me dizer:
- Ajuda-nos a fugir...
Olhei o jornal meio amarrotado, de soslaio apreendi com o olhar um casal de namorados e um homem já entradote na idade, nos bancos do lado oposto àquele em que eu ia. O homem lia A Bola e os namorados liam-se um ao outro sem darem pela presença alheia. Não sei para que olhei para as pessoas, talvez para me certificar que não ia sozinha, que aquilo não era uma alucinação. Se eu tivesse sabido que era um sonho..., mas não sabia.
- Tens que nos ajudar a fugir – voltou a dizer o piercing.
- Mas como?
- Sei lá... pensa! Estamos aqui há uma eternidade, eu então já perdi a conta ao tempo e... – vendo a minha cara alucinada, talvez o esbugalhar dos meus olhos, o piercing enveredou por um discurso mais abrasivo – Escuta mulher: não estás a ter visões! Sou um piercing falador, aliás, somos piercings faladores! Entre estes que por aqui andam há quem fale outras línguas e todos te poderíamos contar estórias de fazer chorar as pedras da calçada, mas não temos tempo. Diz-lhe que vamos enferrujar, diz-lhe que ele vai apodrecer, diz-lhe o que queiras, faz o que queiras, mas ajuda-nos!
O comboio parou em Santa Cruz, o José Luís deu um salto no banco estremunhado, viu-me debruçada sobre ele, levantou-se e, antes de sair do comboio, disse-me, à laia de despedida e com cara de poucos amigos:
- Estavas a dizer algum segredo aos meus piercings?
Abriu-me os olhos e saiu. E eu acordei. No sofá da sala.

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