terça-feira, 20 de abril de 2010

A rapariga que não gostava de livros com as capas dobradas - XV

Quando acordou olhou pela janelas e viu nuvens, nada mais. A hospedeira deu conta que tinha acordado e, com um sorriso enorme, chegou-se a ela e perguntou-lhe se queria comer alguma coisa, pois já tinham servido uma primeira refeição mas ela estava a dormir e não a incomodaram. - Si, por favor.
- Y para beber, ¿quieres algo?
- Agua.
A hospedeira voltou com um tabuleiro com pequenos espaços ocupados por coisas com ar apetitoso.
- Aquí tines una sopa caliente, que te va a gustar.
- Gracias.
O tabuleiro só tinha em comum o nome com os tabuleiros a que estava habituada. Os recipientes eram de louça e continham, para além da sopa, um pequeno prato com carne assada e puré de maçã e outro com um bolo. Havia ainda um pão de reduzidas dimensões, manteiga, um triângulo de queijo e um chocolate. Olhou para o lado de soslaio, viu que o filho dormia e sentindo uma fome imensa atacou os pratos com vagar, saboreando cada coisa com calma. A refeição, apesar de parca, deu-lhe um ânimo de tal forma que chamou a hospedeira e pediu vinho, que lhe foi trazido de imediato. Terminou de comer, guardou o chocolate, pediu um café e teve pena de não puder fumar um cigarro. Levantou-se e foi sentar-se ao lado do filho que, como ela, viajava sozinho numa fila.
- Olá Luís Vargas Rivera.
O filho abriu os olhos, sorriu-lhe, endireitou-se, espreguiçou-se e deu-lhe um beijo.
- Olá Rosa Maria Gamarra de la Torre
Falaram baixo e riram-se os dois do seu segredo.
- Dormiste bem mãe? Explicas-me porque entraste aqui com cara de enterro?
- Quando saí da casa de banho... o pai ia a passar e...
- O quê? – os olhos de Paulo abriram-se desmesuradamente.
- Não me viu por uma unha negra. Pensei que não conseguia entrar no avião, pensei que desmaiava, sei lá o que pensei... ai que susto tão grande...
- Mas como? Ele disse-me ao telefone que já ia p’ró hotel
- Disse-te, disse-te, fez uma conversa natural, não te disse que ia naquele preciso momento e ali andava ele, com um homem do aeroporto, à procura das malas.
- Mas tens a certeza que não te viu, não é?
- Claro! Se me tivesse visto tinha vindo ter comigo.
- Mas que cena mãe, foi até à última... olha, lembrei-me duma coisa que podia arranjar problemas mas já tratei do assunto.
- Outra coisa? O quê?
- Temos que controlar as horas porque vamos estar 12 horas aqui metidos no avião, certo? Então eu tive uma ideia: falei p’ró David e disse-lhe...
- Ai meu Deus, não tínhamos combinado não dizer nada a ninguém?
- Mãe, mas íamos ter problemas e eu já resolvi tudo, escuta-me. Falei p’ró David por sms enquanto estava na fila, e acredita mãe o David nem morto lhe arrancam uma palavra.
- Sim, e disseste-lhe o quê?
- Disse que precisava dum favor e que não podia ser incomodado durante um dia inteiro e por isso ia reencaminhar o meu telefone p’ro telefone dele. Se o pai ligasse, e é assim, ele sabe das minhas cenas com o pai por isso não estranhou, ele que dissesse que eu tinha lá estado e me tinha esquecido do telefone. Amanhã retiro o reencaminhamento e falo com o pai, o que achas?
- Está bem, foi bem pensado. Quem é o David?
- É um grande amigo mãe, mesmo à séria! Confiamos tudo um ao outro. E acredita que ele não vai fazer perguntas.
Sentiu que o nervoso miudinho regressava pois, se não tinha pensado naquilo, se calhar havia outras coisas em que não pensara e que podiam ser graves. Isto para não falar que estava em liberdade condicional, tinha raptado o filho e fugido do país com nomes e passaportes falsos. Estes pensamentos tomaram conta dela de tal forma que a angústia lhe provocou dores de estômago.
- Mãe, dói-te o estômago porque não comias à horas e agora comeste e isso acontece. ‘tá tudo bem, ‘tá tudo bem...
Fez um esboço de sorriso para mostrar ao filho que sim, que estava tudo bem e contou-lhe da carta que tinha ido pôr em casa do pai, antes de apanharem o Lusitânia.
- Porque não me contaste no comboio?
- Esqueci-me, é tanta coisa que me esqueci, mas agora sabes, sinto-me muito melhor e a verdade é que estamos a sobrevoar o Atlântico por isso, já nada importa. Dentro de poucas horas vamos conhecer o Sr. Manuel Vega, que algo me diz é o motorista deles!
- Motorista? Achas que eles têm motorista?
- Sei lá filho, já não sei nada...
- Mãe, de repente tive uma ideia- disse o rapaz com os olhos a brilhar - E se esse tal Manuel Vega é o Robin ou o avô? Afinal, nós temos outros nomes e faria todo o sentido, não achas?
Falavam baixo, em sussurros e a mãe riu-se com a ideia.
- Sim, pode ser. O avô João passa a ser o Avô Manuel e a avó, como se chamará?
- Avó Rosita!
Riram-se ambos e ela sentia-se literalmente nas nuvens, o nervoso miudinho tinha passado, parecia que a altura a que iam tinha feito dissipar as preocupações e a angústia, que não a abandonara desde que saíra da prisão e constatara que não havia quem quer que fosse à sua espera.
- Então mãe, é agora que me vais contar como foi?
- Que queres que te diga... não me envolvi em zaragatas, não fui maltratada, não fui violada, nada disso. Apenas tinha dores incalculáveis de saudades de ti, da Tia Teresa, dos avós e...
- ... e do pai, não é mãe?
- Sim e do pai, mas...
- Esquece o pai, esquece-o, pensa no Santiago e na Elena que vamos encontrar dentro de... – e olhando para o relógio acrescentou - ... de seis horas! Tenho tantas saudades do avô João...
- Vamos matá-las, já falta pouco...
- Mas vá lá mãe, conta como foi, tu prometeste...
A mãe desligou a pequena televisão encaixada no banco da frente que passava um filme com actores cujas caras ela não reconheceu. Virou-se para o filho e descreveu-lhe aqueles três anos tentando ser equilibrada, não dando ênfase ao suplício que vivera, mas também sem aligeirar as angústias e os medos, e os vários momentos delicados que passara. Falou das guardas, das outras reclusas, dos livros, da inveja que sentia daquelas que trabalhavam no horto da prisão, que andavam com a cara bronzeada e podiam encarar o sol de frente, encadeando-se com ele, molhando-se à chuva, sentindo o vento na cara e mexendo na terra. Contou como em Tires trabalhara na lavandaria e já podia andar em espaços ao ar livre e como se fartara de chorar a primeira vez que isso acontecera. Falou-lhe de Damiana e de Cremilde, contando em pormenor as descrições de São Tomé. Ouviu o filho rir com as historietas da Pinta, da Niña e da Santa Maria e com os ditos das ciganas. Contou-lhe os Natais e como as prisioneiras mudam naquela altura do ano a quem ninguém é imune, como se chorava na noite de Natal, em que eram deitadas lágrimas diferentes das dos outros dias, mais tristes e carregadas de maior solidão. Contou-lhe como os sorrisos no Natal eram mais verdadeiros e elas se aproximavam mais umas das outras, fingindo todas interiormente, que cada uma é o familiar com que queriam na verdade passar a Consoada. Deixou as lágrimas correr livremente e descreveu as conversas onde os filhos tinham lugar de protagonista e como se sentiam mais próximas nesses momentos. Fez o rapaz chorar quando ouviu a descrição da raiva que sentia ao ver as outras receber cartas e como ela mergulhava na leitura de qualquer livro tentando convencer-se que aquilo era a sua carta, que alguém tinha escrito aquele livro para si e só para si.
Foram interrompidos pela hospedeira que lhes perguntou se queriam comer alguma coisa e Paulo pediu um chocolate e ela um café.
- Tenho que ler o tal livro, O Ingénuo, para ver se descubro alguma coisa...
- Deixa isso mãe... não te canses
- Como assim? Tenho que o ler! – e disse isto e foi-se sentar no seu lugar abrindo o livro. Rapidamente se sentiu ensonada com as andanças do Hurão e pôs o livro de lado, indo sentar-se novamente ao lado de Paulo, encostada a ele, em silêncio a saboreá-lo, como se tentasse recuperar anos perdidos absorvendo-lhe o cheiro.
Acabou por adormecer novamente e sonhou com o reencontro com Teresa e os pais. Foi acordada pelo aviso a pedir para porem os cintos. Apercebendo-se que estavam a chegar a Lima sentiu o coração na boca, sentando-se no seu lugar e olhando o filho em silêncio. O olhar era-lhe retribuído por Paulo, como a dizer-lhe que tivesse calma; era um olhar sorridente.
Aterraram no Aeroporto Internacional Jorge Chávez cansados mas com uma ansiedade enorme. Estavam no Peru.
Quando finalmente saíram do aeroporto e conheceram Manuel Vega, que os esperava de acordo com as instruções da irmã, este fez-lhes cumprimentos como se fossem velhos conhecidos; tentou corresponder mas não conseguiu pensar em mais nada senão na sua família que abraçaria rapidamente. Pensava ela.
Com receio que o pai tivesse tentado falar-lhes durante o voo, telefonaram-lhe, com uma voz calma e natural, e ouviram-no recomendar que o filho não se voltasse a esquecer do telefone em casa do David: o esquema tinha funcionado. Mas a seguir ouviram-no perguntar porque raio estavam a ligar às cinco da manhã, pois eram exactamente essas horas em Portugal! Paulo explicou que percebera que se tinha esquecido do telefone e que o fora buscar; acabava de sair da casa do David e sentiu obrigação de ligar imediatamente para o pai, sabendo que estaria levantado, precisamente por causa da diferença horária. O rapaz ainda conseguiu calar o pai, dizendo-lhe que era preso por ter cão e por não ter, pois se não lhe ligava, o pai zangava-se e agora que ele lhe falava, zangava-se na mesma.
- Em que ficamos pai?
A voz era séria mas o ar era brincalhão. Com despedidas e juras de se portar bem e de telefonar se precisasse de alguma coisa, finalmente lá desligaram. Mãe e filho ficaram a olhar um para o outro a pensarem em simultâneo que se o pai os soubesse em Lima onde acabavam de entrar com passaportes falsos lhe daria um ataque e combinaram deixar o relógio do Paulinho com a hora de Lisboa para ligarem ao pai de vez em quando, a horas decentes. Para isso marcaram um lembrete no telemóvel que os ajudaria a não se esquecer dos telefonemas nos próximos dias e esperavam estar em casa dois ou três dias depois do pai regressar.
Manuel Vega dirigi-os a um jipe enorme com ar de ter participado na segunda guerra mundial e perante o olhar de Paulinho que dizia que não andariam dois quilómetros naquela sucata, Manuel sorriu e pediu confiança no carro, num espanhol da América do Sul, avisando que o hábito não faz o frade e informou que iriam andar cerca de trezentos quilómetros para nordeste em direcção a Huánuco.
- Trezentos quilómetros? Meu Deus...
O desespero da mãe contrastava mais uma vez com a calma do filho e foi Paulo que a ajudou a subir para o carro enquanto cantava qualquer coisa desconhecida para a mãe, mas que mostrava a alegria e excitação do rapaz por ir onde nunca fora nem sonhara ir.
Chegaram a Huánuco mais mortos que vivos depois duma viagem barulhenta e tormentosa durante a qual Manuel Vega pouco ou nada disse contrastando com a familiaridade com que os recebera. Optaram por não lhe fazer perguntas pois não sabiam o que a família lhe teria dito sobre eles e, se bem que as perguntas fossem muitas e a vontade de as fazer enorme, acharam por bem ouvir o que Manuel lhes dissesse mas não perguntarem nada, embora ardessem por dentro de ansiedade. Questionaram-se por diversas vezes se a família morava em Huánuco e perceberam que a resposta era negativa quando se dirigiram-se para o Aeroporto de Huánuco e Manuel os encaminhou para uma pequena avioneta, onde mãe e filho esperaram sentados, oscilando entre o deslumbre do encantamento da situação e toda a aventura que viviam, e com uma certa apreensão sobre o lugar onde estavam e para onde iriam. Ela levara consigo as cartas da irmã e lia repetidamente... com um xis na janela, na tentativa de se acalmar. Afinal, onde morava a sua irmã?

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