Senhora Rosa Lobato de Faria
Lamento profundamente que tenha morrido sem que tivesse tido a oportunidade de lhe falar do prazer que me deu ler o seu livro ‘Os Três Casamentos de Camilla S.’
Sendo a leitura algo que se treina, torna-se mais difícil apanhar-nos desprevenidos com o enredo. Quantas vezes, longe do fim da narrativa, já se percebe o encadeamento da acção e, com frequência, descobrimos o ‘culpado’ antes até do ‘crime’ acontecer.
Desta vez isto não aconteceu. E quando acontece acontecer sermos surpreendidos, apesar do treino, apesar do conhecimento de mil relatos e descrições que, quantas vezes, nos parecem colagens de outras leituras, quando acontece acontecer o inesperado, sinto sempre vontade de falar com o autor, de olhar as mãos cujos dedos se enlearam para produzir aquela sequência de palavras e não outras, aqueles espaços e parágrafos e não outros. Sinto vontade de dizer que eu já conhecia esta ou aquela personagem, desta ou doutra vida.
Quando leio, os olhos entram pela porta das palavras e transportam-me toda para o seio da descrição, dos acontecimentos; equilibro-me nos olhos marejados e deslizo pelas faces de quem chora pendurada nas suas lágrimas. Abro os braços e cerro o olhar, sentindo a força da alegria dos personagens como se fosse o vento que me empurra e brinca comigo.
Lembro-me duma descrição escrita que me deixou a transpirar, ansiosa e trémula, quando o Sr. José – protagonista de Todos os Nomes, de Saramago – fez o assalto nocturno à escola. É vibrante.
‘Os Três Casamentos de Camilla S.’ conseguiu colar-me o olhar às palavras, a certas palavras feitas janelas, num desejo profundo e íntimo que a vida se tivesse enganado e que a descrição não fosse como é. Digo a vida e não a autora, porque leio e acredito que tudo aconteceu e se passou assim. Passo a ser amiga dos personagens ou a rezar para não os encontrar nunca, nem ocasionalmente, se não gosto deles. Chego até a desejar-lhes a morte.
Li o livro de empreitada. Comprei-o cerca das três da tarde e terminei perto das duas da manhã. Sempre que a narradora anunciava que nada mais tinha para contar digno de registo, eu punha as mãos em oração interiormente e pedia que continuasse, que me permitisse fazer parte daquela vida, pelo menos enquanto espectadora, mesmo em diferido, pedia que não me deixasse sozinha.
É um privilégio ler um livro assim, um livro que nos deixa entrar lá dentro, sem licenças, que nos deixa sentar em qualquer poltrona, comer o que estiver à mão e usar como meu tudo o que contém.
Quando a descrição duma lembrança arrepia um personagem e nos consegue arrepiar a nós, simples leitores, a mão do autor deve ser venerada.
Senhora Rosa Lobato de Faria, sempre simpatizei consigo, por achar, vá lá saber-se porquê, que a senhora era a conjugação de várias vidas, bem vividas, e que mostrava a essência desse resultado. Agora, depois de ter partilhado este leitura, lamento profundamente não lho dizer de viva voz.
segunda-feira, 1 de março de 2010
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