Há muitos anos atrás… long, long time ago... os meus pais tiveram um colégio infantil que se chamava Viveirinho.
Dificuldades à parte, a vida não era fácil, principalmente para mim que estudava e trabalhava arduamente, daqueles tempos ficaram-me memórias muito felizes e meia dúzia de nomes que nunca vou esquecer. Nomes de miúdos que me marcaram e me ajudaram a fazer como sou hoje.
A Paulinha e a Sílvia, o Paulinho, o Tiago e o Romão. Houve outros, mas estes adoravam-me e eu adorava-os a eles.
A bem da verdade, o contacto com a Sílvia vinha da forte ligação que eu tinha com a irmã, a Paulinha, a mais nova de todas as crianças a que me liguei; custou-me muito quando elas saíram do colégio e foram morar não sei bem onde. A princípio, ainda fazia algumas dezenas de quilómetros por dia para as ir buscar, quando mudaram de casa a primeira vez. Depois, mudaram para parte incerta e perdi-lhes o rasto. Ouvi dizer que o pai se metera em negócios ilícitos e até que fora preso, não sei se é verdade ou não.
O Paulinho era um miúdo que ninguém conseguia deixar de gostar dele: com o cabelo escorrido e grande a pender-lhe na cara, era muito traquinas mas, em simultâneo, muito amoroso. Ficava no colégio até muito tarde e, apesar de eu não o ir levar a casa – uma das minhas tarefas era fazer o transporte das crianças de manhã, recolhendo-as em casa e leva-las de volta à tarde – ele ia frequentemente comigo, para me fazer companhia e ia sempre a conversar.
O à vontade e jeito especial que tenho com os miúdos e adolescentes vem desse tempo, em que eu os ouvia e conversava com eles, em que me zangava se faziam disparates e ainda me lembro de lhes dar umas palmadas. Mas o relacionamento que tínhamos ultrapassava tudo: eles não perdiam uma ocasião de ir comigo para casa, eu ajudava-os na escola, eles ajudavam-me até nas tarefas em casa, onde passavam horas comigo. Cheguei a levá-los ao Alentejo, pelo menos duas vezes que me lembre, e as viagens eram um desatino de risos, conversas e boa disposição, com histórias e cantigas à mistura.
O Tiago e o Romão recusavam sistematicamente ir embora para casa e com frequência acabavam por jantar comigo e só depois os levava a casa. Isto nas noites em que não ficavam a dormir na nossa casa.
Sempre senti que muitas vezes não era preciso falarmos para nos entendermos, bastava olharmo-nos e tudo fazia sentido.
Dos mil momentos que passámos juntos lembro-me dum em particular que me fez chorar desalmadamente e... ainda faz.
Fomos passar o Natal ao Alentejo e no dia seguinte ao regressarmos a casa tivemos um acidente, à entrada da ponte 25 de Abril. Eu parti os dedos dos pés e os ossos da cara e fui operada no Hospital de São José. Com gesso na cara que me fazia parecer o Homem da Máscara de Ferro, consegui que me deixassem vir passar o fim de ano a casa. No dia útil a seguir, com a ajuda de canadianas fui até ao Viveirinho, muito devagar.
Eram as férias de Natal e os miúdos estavam todos na brincadeira no quintal. Lembro-me que trazia um casaco preto comprido quase até aos pés, que se enleava nas canadianas e tinha feito o caminho a desviar o olhar de quem me olhava com a cara coberta pela máscara de gesso.
Entrei no colégio e, depois dos cumprimentos aos adultos, fui até ao cimo das escadas que davam acesso ao quintal onde os gritos dos miúdos lhes misturavam as vozes.
Deixo-me ali ficar uns segundos até que um deles, não me lembro quem, gritou aos outros de braço estendido, apontando-me:
- Olhem!
As cabeças viraram-se, os gritos pararam e impôs-se um silêncio só interrompido por uma bola que saltava, largada da mão por um deles. Todos pareciam hipnotizados a olhar para mim, até que um deles disse:
- É a Lena.
Os gaiatos que se encontravam dispersos pelo quintal aglomeram-se ao fundo na escada, no cimo da qual eu me equilibrava nas canadianas, querendo subir para me falar mas...
Mas houve dois de entre eles que correram mais depressa que os outros e se puseram literalmente à minha frente, não a beijarem-me nem a abraçarem-me, mas a afastar os outros, com interjeições e impropérios de toda a qualidade e feitio.
Estavam a defender-me...
Eram o Tiago e o Romão. Quem se pode gabar de ter tido defensores assim...?
Passados poucos anos os meus pais venderam o colégio, mudámos de casa e os relacionamentos fragilizaram-se. Há uns anos procurei e encontrei o Tiago mas voltei a perder-lhe o rasto.
Agora, passados muitos anos, mais de vinte, resolvi procurá-los e a minha (famosa) teimosia ajudou-me a encontrá-los. Porém, a felicidade de ouvir a voz do Tiago, tão espontâneo como sempre foi, com uma voz que nos faz perceber o azul dos seus olhos e me leva para as boas lembranças do passado, foi igual à tristeza que senti ao saber que o Romão já morreu.
Primeiro não quis acreditar que era ele: um nome num Edital da Câmara a anunciar a exumação. Depois fui aprofundando a pesquisa e falei com um colega de trabalho que me disse ‘Ele já não está entre nós’. Tentei iludir aquela verdade que me deixou as lágrimas à beira dos olhos: mas seria mesmo aquele, era novo, a mãe como se chamava, onde morava...
Todas as respostas se encaminharam no mesmo sentido e percebi que conduziam ao ‘meu’ Romão. Pelas minhas contas tinha 24 anos quando morreu, num acidente de viação, como me contou depois o Tiago.
Tenho um relacionamento pacífico com a morte. Há excepção dum livro infantil horrível que li em criança e que me deixou gravada uma imagem aterradora, em adulta, lido bem com o adeus, os despedimentos e os fenómenos da morte. Choro, é claro, sinto saudades e fico magoada por dentro, mas encaro-a como algo que pode acontecer... e acontece mesmo.
Mas mesmo assim, nunca pensei que pudesse sentir aquilo que sinto: uma tristeza avassaladora e funda.
Só a voz do Tiago me ajudou, bem como o facto de saber que tem dois filhos e de lhe adivinhar a mesma boa disposição.
Reencontrá-los hoje foi emoção demais, mesmo para mim, que sou... bem, sou como vocês sabem...
Aqui fica um beijo enorme para o Romão.
Para o Tiago guardo-os para lhos dar pessoalmente, muito em breve.
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