quarta-feira, 31 de março de 2010

9 de Maio de 2007

João
(Esta é a carta que eu gostava de te escrever e que chorasses de alegria ao recebê-la...)
Não te quero doente.
Prefiro ser eu a ficar constipada, com gripe, varicela ou sarampo.
Mas não esperes ter dores, sentir os braços e as pernas cansados e pesados e o corpo febril e não fazeres nada.
Eu estou assim e não é agradável.
A falta de dormir tem o efeito duma gripe.
Quando não se dorme pelos motivos pelos quais fiquei acordada ainda é pior.
Quando se fica doente depois duma noite assim, pior ainda.
Não sabes o mal que me fazes quando estou sentada à tua frente, a olhar-te. Lembra-me um dia, já muito longínquo no tempo, ainda namorávamos, em que pensava que ia ter um ataque cardíaco ou transformar-te em Jesus Cristo e pregar-te, não na cruz, mas na cama, e não com pregos, mas com beijos. Não sei como o peito não rebentou, naquela noite. As imagens passavam-me pela cabeça, como a paisagem passa por quem vai a velocidades impensáveis.
Faço um esforço enorme por te tirar da cabeça, nem que seja por alguns minutos, mas há sempre qualquer coisa que me estraga os planos: uma letra do teu nome, uma canção, um carro igual ao teu, um cheiro, uma mão pousada num corrimão, um perfume, uma brisa…e o meu coração acelera como se estivesse na pull position duma corrida e na primeira curva,…e os meus olhos procuram-te e encontram uma cidade sem ti,…e os meus dedos recusam marcar aquele numero de telefone,…e a minha alma vira-se do avesso e começa outro dia: com manhã, hora do almoço, tarde e noite.
Oh, noites em que o mundo descansa e eu envolvo-me em batalhas perdidas comigo e com os meus sonhos.
Quero sonhar outra coisa, quero não me lembrar do que sonho, quero não sonhar…quero que deixe de ser sonho…
Valem-me as noites que passo sozinha – o Duarte tem dormido com a minha irmã. São dolorosas, mas não nos obrigam à convivência com um corpo que nos queima por nada nos dizer.
De todas as coisas complicadas que já vi e de que já ouvi falar, amar é a mais difícil: o tempo escapa-se por entre o nada, as sensações são como uma enxurrada de lama e água que sobre nós se abate, deixando-nos atolados e presos na invisível, mas texturada, teia do tudo e do nada.
Empreender tarefas complicadas a nível físico pode matar.
Esta é a grande diferença: vou viver nesta tortura, não tenho a benção de morrer como quem morre depois de atingir o cume do pico mais alto do mundo, quem fez a travessia do Sahara ou quem passou o Cabo da Boa Esperança…
Amar dá tonturas, leva a esticar os braços para o vazio, faz sentir que estamos a ser beijados quando estamos sozinhos, faz puxar pela memória em busca de momentos que duraram um décimo de segundo ou de sabores que há muito a nossa boca não sente.
Amar faz com que o intervalo entre cada dia pareça o tempo que medeia a passagem do cometa Halley pela Terra. E quando o dia não acontece? É como se o cometa passasse e nós estivéssemos fechados numa casa sem janelas. É como se, por milagre, tivéssemos asas e não conseguíssemos voar.
Em simultâneo, e por estranho que pareça, amar faz esquecer, secundariza emoções que se consideravam fortes, retira importância a desavenças do passado. Esquecemo-nos que já somos crescidos e queremos crescer novamente. Queremos fazer coisas como se fosse a primeira vez e experimentar a novidade reinventada.
Amar é escrever um livro das mais belas e fantásticas aventuras, com cicatrizes que se acumulam no peito. Um livro que nos faz rir a propósito duma página em branco, chorar sem motivo aparente, mostrar alegria em dias de chuva que se pensava detestar, não ver os dias de sol com bons olhos porque a luminosidade pode não ser aliada da clandestinidade, sentir um arrepio quando os heróis falam ao telefone…
Amar é ouvir o outro falar e contar histórias e senti-las como se nós as tivéssemos presenciado e sentirmos dor e ciúme e raiva e incompreensão e saudade e temor e conseguirmo-nos lembrar duma coisa que não vimos, porque ele está a descrevê-la e através dele vivemos nós e respiramos mais depressa ou mais calmamente conforme a emoção que ele emprega na descrição que faz e…
E por tudo isto, meu João, não gosto que me digas que te sentes doente, porque amar também é ficar doente quando o outro não se sente bem e a terapia que eu te sugiro, não, não é tomares medicamentos, é sentares-te ao meu lado e encostares a cabeça ao meu peito e deixares que eu te cure com uma força que tu desconheces e da qual só sentes um laivo, um vislumbre.
Quero encontrar-me contigo fora de casa, sem a pressão dos meus pais e do Duarte… só para conversar… o tempo será nosso aliado, mas temos que o deixar correr, sem pressas…

Com amor da tua
Camila
PS. Imagino que leias isto e aches que escrevi em chinês...
PS. 1 Um dia alguém vai receber uma carta igual e vai compreendê-la

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