quinta-feira, 18 de março de 2010

Cegos são os deuses

Quando a tristeza é tão grande que não há oceanos que a possam conter, e o próprio Júpiter se assemelha a um grão de areia onde nada cabe, surge uma sensação de desorientação profunda.
É como se as ruas tivessem mudado de sítio, a cidade se virasse do avesso e as emoções deixassem de respirar, de ter vida própria.
É assim que me sinto.
Sufoco ao respirar, atirada para os fundos da galáxia, numa asfixiante despensa do universo. Não faço ideia onde estou. Perderam-me.
Sinto as batidas do coração como a contagem decrescente do lançamento duma nave espacial, envolvas num barulho ensurdecedor e quase terminadas. Sinto que acabam a qualquer momento.
Nada está no sítio, tudo se moveu devido a um cataclismo invisível que se abateu no lado esquerdo do meu peito.
Mentira! Puro engano!
As coisas sempre assim foram... mas a minha cegueira fez-me passar quase cinco décadas a rezar a um Deus que não quer a minha fé.
Como pode um Deus queixar-se dum mortal? Como o pode acusar de lhe ser maléfico?
Haverá prova maior que o mundo está virado ao contrário?
Expulsaram-me do altar onde me ajoelhei a vida inteira, as minhas preces sussurradas foram proibidas por se assemelharem a gritos aos ouvidos divinos, as minhas orações eram discursos agora banidos.
O que se responde a um Deus?
A um Deus que se venera, que se ama, por quem se fazem sacrifícios? O que se responde a um Deus que nos manda afastar? Nada... não se responde nada, cumpre-se a sua vontade.
A ideia dum Deus sentir raiva por quem lhe reza é contra-natura. Serão os deuses assim? Afinal, não são humanos e até me questiono se, do alto de todos os seus poderes, terão eles um vislumbre do sofrimento que causam quando afastam um crente? Não creio... eles não sentem da mesma forma. Por isso, quantas vezes nos perguntamos por que acontecem certas coisas que, para nós, simples pessoas, são inexplicáveis e injustas... e continuarão a ser.
A minha desorientação é cada vez maior... ao longo da vida, não posso ter dado mais provas de dedicação e louvor, de amor e entrega, de acompanhamento e presença. O que devo fazer mais? Dar a vida como nos antigos rituais? Chego a pensar que é o que quer este Deus que me manda afastar por lhe fazer mal, que não pode ouvir-me nem ver-me, que instituiu o afastamento como condição obrigatória para a sua nova vida...
Como se reclama com Deus? Como se faz para o lembrar de todo um percurso de vida, inteirinho, de dedicação absoluta?
Não sei, sou uma simples mortal que sempre foi a primeira a chegar à igreja e a última a sair dela. Sinto-me escorraçada. Friamente escorraçada por um Deus que me fala como se me tivesse chamado a vida inteira e eu tivesse virado as costas, eu que virava as costas ao mundo só para o olhar e adorar. Eu que me sentia abençoada só por ele me permitir olhá-lo...
São assim, os deuses, imprevisíveis, ingratos e injustos. Cegos, são os deuses.
E hoje, a tão poucos dias da ansiada Primavera, quando o sinistro Inverno já se afasta e se avistam azedas nos quintais, quando o sol se deixa ver em espaços cada vez maiores, quando a esperança do calor nos aquece por antecipação, quando os dias crescem e planeamos sair do lugar onde nos escondemos durante as chuvas, quando sorrimos à vista das primeiras tímidas borboletas, somos arrasados por uma convulsão que nos arremessa para o limbo, um lugar de dúvida da própria existência.
Deus diz que está doente e acusa-me de ser parte da doença.
Silencio-me estupefacta com o esquecimento das nossas vidas em comum, com o apagar duma essência que me é indispensável.
Quem soprou e apagou a vela que um dia lhe dei com a recomendação que a acendesse sempre que precisasse de mim, com a certeza que eu iria ter com ela?
Quem a desmembrou e atirou comigo para o cesto dos excedentes?
Quem, quem, quem, o quê, o quê, o quê...?
Tanta pergunta inútil.
Já não existo.
Deus descartou-me. Já não precisa de mim. Se calhar nunca precisou e a minha estupidez não me deixava alcandorar esta verdade.

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