quinta-feira, 11 de março de 2010

A rapariga que não gostava de livros com capas dobradas - XIV

Acordou imensas vezes a meio da noite com os solavancos do comboio e foi das primeiras a tomar o pequeno almoço na carruagem bar. Não viu o filho, com pena dela, mas pensou que assim era melhor. Eram nove horas em ponto e o comboio estava a entrar na estação de Chamartín.
Saiu com a sua reduzidíssima bagagem e foi para a fila dos táxis que era enorme. Se demorassem muito, o Paulo chegaria primeiro de metro.
Finalmente lá se meteu no táxi e pediu para ir para o aeroporto. Cerca duma hora depois do comboio chegar a Madrid, entrou em Barajas e achou o aeroporto lindo, como lindos deviam ser todos os aeroportos do mundo. Pensou que ali se daria o derradeiro passo na irreversibilidade da sua acção. Andou ao acaso, procurando Paulo com o olhar, mas não o viu. Viu indicações de, pelo menos, quatro terminais, e achou o aeroporto amplo e muito luminoso.
Olhou em volta e viu que era quase meio dia. Sentou-se numa mesa e ia pedir qualquer coisa para comer quando viu a filho a acenar-lhe e a chamá-la. Levantou-se imediatamente e foi na direcção dele com o sorriso a morrer-lhe nos lábios à medida que se aproximava e que via a cara transtornada do filho. Acelerou o passo até dar uma pequena corrida enquanto o rapaz fazia sinal para se despachar. Antes que tivesse tempo de abrir a boca empurrou-a para dentro duma casa de banho, entraram num dos compartimentos e disse:
- Mãe... tem calma, ‘tá tudo bem mas... acabei de ver o pai.
Ela não disse mas o seu olhar de terror dizia tudo, enquanto as lágrimas teimaram em saltar.
- O pai? Aqui? Como é que ele soube? E a polícia? Ele andava com polícia?
- Não mãe. Dei com ele por mero acaso. Apanhei um susto enorme, mas depois percebi que ele não está atrás de nós.
- Então o que está aqui a fazer?- perguntou a mãe em aflição total.
O rapaz fez-lhe sinal que falasse baixo pois, afinal, estavam dentro do mesmo compartimento, na casa de banho dos homens.
- Quando entrei no aeroporto ia a sair um monte de gente em direcção aos táxis a falarem português...
- Sim... e então? Por favor, explica rápido!
- O avião de Lisboa para Paris teve uma avaria qualquer e pararam aqui, só que o pai perdeu as malas e toda a gente saiu mas ele anda aí. Ele tinha-me dito que íamos fazer escala em Paris e depois é que íamos do aeroporto Charles De Gaulle para a República Dominicana. E agora ouvi-o dizer à Adelaide que ia ter com ela ao hotel logo que encontrasse as malas.
- Estamos atrasados... o que fazemos? Ele por aí pode dar connosco a qualquer momento...
A cabeça estalava-lhe com a dor que se tinha instalado durante a breve explicação. Sentia-se nauseada novamente e pensou que o melhor era aproveitarem os bilhetes de comboio ida e volta e regressarem a Lisboa.
- Nem pensar mãe. Temos que ter calma e vamos apanhar o nosso avião, percebes?
O tom do filho era firme e não admitia contestações, mas ela estava apavorada.
- Como? Já viste a nossa figura metidos numa casa de banho pública? Ele pode entrar por aqui a dentro em qualquer instante!
As mãos tremiam-lhe, suava abundantemente, estava com tonturas e nauseada. Assim que se aproximasse do avião e a vissem assim pensavam logo que transportava droga e aí sim, estava tudo estragado.
- Mãe, vamos sair daqui os dois devagar e tu vais pela direita e eu pela esquerda. O balcão é o 14. Abre bem os olhos e pensa que ele não está à espera de nos ver aqui, mais ainda, assim é mais uma ocupação para ele e...
Paulo foi interrompido pelo toque do telefone.
- É o pai...
Olharam-se e o rapaz rapidamente ganhou a compostura, fez sinal de silêncio à mãe e atendeu:
- Atão, tudo bem?
- ...
- A sério? Não acredito...
- ...
- Pois, ‘tava a estranhar ‘tares a ligar a esta hora, atão e agora?
A mãe bem se esticava para ouvir alguma coisa mas não conseguia. De repente o filho abriu a porta da casa de banho, deu um encontrão num homem que levava as mãos no lavatório e correu disparado em direcção à rua. A mãe ficou atónita com aquele comportamento e, sem saber se devia ficar ali ou sair, optou por sair, principalmente depois dos olhares de que foi alvo por parte dos dois homens que estavam na casa de banho.
Saiu e ficou à porta tentando perceber para onde tinha ido o filho. Quando achou que ia desmaiar com tanto susto viu o rapaz caminhar na sua direcção.
- Mãe... ‘ta tudo bem...
- Onde foste? Perguntou ela entre o zangada e assustada.
- Ouve- pediu o rapaz – Nas casas de banho também se ouve a chamarem para os aviões e se ele ouvisse, podia não perceber, mas achava logo muito estranho.
A mãe sorriu perante a agilidade mental do rapaz.
- Tens razão... e que disse ele?
- Contou da avaria, das malas, disse que vão ficar pelos menos até às cinco da tarde aqui em Madrid e que estava a ir para um hotel. Vamos mãe, é a nossa oportunidade.
A voz do filho estava cheia de pressa, disse tudo a correr, comendo metade das palavras e empurrando a mãe para a frente, enquanto carregava as duas pequenas mochilas e a incentivava:
- Vamos, depois disto tudo não queres perder o avião, pois não?
Com uma mochila às costas e outra por cima dum braço, meteu o braço livre no da mãe e puxou-a em direcção ao balcão.
Acabaram por fazer o check in juntos apesar de darem os bilhetes isoladamente.
Entregou o passaporte em nome de Rosa Maria Gamarra de la Torre e obrigou-se a concentrar, embora só pensasse que a rapariga que o recebeu ia detectar imediatamente que não era verdadeiro. Olhou para o lado e viu um casal com um bebé; tentou sorrir-lhe e centrar-se noutra coisa qualquer que não a sua clandestinidade. A mulher do balcão devolveu-lhe o passaporte com o bilhete de embarque dentro e perguntou se tinha bagagem. Acenou que não com a cabeça, achando imediatamente que acenara com muita intensidade. Indicou-lhe a porta de embarque 71 e afastou-se do balcão a perguntar-se se alguém acharia estranho que não tivesse bagagem.
Procurou com o olhar as indicações quando viu que Paulo, ou melhor Luís Vargas Rivera, a chamava com gestos. Avançaram rapidamente na direcção da porta 71.
- Mãe, vai a uma casa de banho e lava a cara. ‘Tás cá com um ar... eu vou andando e encontramo-nos dentro do avião. Olha é ali.
Entrou na casa de banho e constatou que estava com péssima cara. Lavou-a, fez exercícios com os músculos faciais, passou os dedos molhados pelo cabelo, inspirou fundo várias vezes e empurrou a porta para sair da casa de banho. Assim que a entreabriu ouviu uma voz conhecida, uma voz que já lhe dissera muitas coisas, até que a amava:
- Yo no tengo suerte... un avión estropeado y mis maletas perdidas, hem, ¿que suerte es esta?
- Calma señor, que sus maletas no están perdidas… ya las vamos a encontrar y…
Não ouviu mais mas foi o suficiente para ter uma tontura que a obrigou a apoiar-se na porta. Sentiu-se petrificada ao pensar que por pouco, por muito pouco não dava de caras com Francisco. De repente sentiu uma dor no peito: Paulo... o filho não estava à espera dele e iam encontrar-se de certeza. Abriu a porta devagar e espreitou. Havia uma fila em movimento diante da porta 71 e Paulo estava na fila com um boné azul com a pala virada para trás. Ela que nunca gostara que ele fizesse aquilo, agora sentiu-se segura com aquela visão.
Hesitou sobre o que fazer a seguir, espreitou mas não viu sinais de Francisco. Deixou-se ficar ali parada, o coração a bater desenfreadamente, de tal forma que pensou que as outras mulheres na casa de banho o poderiam ouvir. Em pouquíssimo tempo era a segunda vez que ficava plantada à porta duma casa de banho pública. Espreitou a medo, viu que a fila ia andando e, num minuto viu Paulo desaparecer no meio das pessoas que avançavam. Decidiu ficar ali até que todos entrassem. Se Francisco passasse novamente ela metia-se dentro da casa de banho; quando a fila não tivesse ninguém ela corria, dava o bilhete e em dez segundos entrava.
Foram dois minutos que pareceram duas horas. Passava imensa gente e todos pareciam falar português, parecia-lhe ver o cabelo do marido em todos os homens, a voz vindo ao seu encontro, acusando-a como uma criminosa que era por raptar o filho.
Estava em choque quando ouviu o altifalante dizer que era a última chamada para o voo para Lima. Encheu o peito de ar, tentou mostrar passos seguros, dentro dos ténis novos e avançou em direcção à hospedeira.
Entregou-lhe o bilhete e o passaporte devagar, com uma calma que parecia pertencer a outra pessoa, sentindo que fazia tudo em câmara lenta. Ouviu a rapariga desejar-lhe boa viagem e viu-a sorrir, como se as palavras e o sorriso não fossem para si. Caminhou em direcção à manga que a levaria ao avião para Lima e foi recebida por um rapaz de uniforme que lhe estendia a mão pedindo o bilhete e a encaminhou para a segunda fila do avião, com mais sorrisos e simpatias. Sentia-se planar, nem se apercebeu que ia em primeira classe e ignorou o ar intrigado do filho a questioná-la. Sentou-se, pôs o cinto de segurança, abriu a mala e tirou um comprimido com mãos trémulas, que engoliu sem água nem nada. A dor de cabeça era insuportável, os batimentos cardíacos eram sobre humanos, as tonturas equivaliam às vertigens que teria na varanda dum prédio de cinquenta andares.
Passaram vinte longos minutos até que o avião descolou da pista. Quando o filho se sentou a seu lado e lhe perguntou com ansiedade o que se passava, ela só conseguiu chorar. Chorou até adormecer.

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