quarta-feira, 17 de março de 2010

21 de Março de 2007

João…
Esta separação está a custar-me, a doer-me, a magoar-me…
Durmo todas as noites com o Duarte, que se consola com isso.
Mas tu vens-me à ideia e acodes-me ao espírito e o nosso filho faz os trabalhos da escola e diz que o I grande parece que está a pensar e o C de sapato é a letra mais bonita e eu riu-me com ele e tu estás aqui ao lado e ris também.
Céus, como eu queria que me invadisses, como eu queria que me conquistasses e sem luta, sem batalhas, uma entrega total, uma rendição sem precedentes.
À bocado eu e ele fomos jantar e ele não quis sobremesa, quis antes que eu comprasse pastéis de nata para comermos na cama, e logo eu a pensar que engordam tanto, mas ele pediu e vai fazer questão que eu coma também e eu comprei e comemos os dois, nos lençóis lavados – não sei se te lembras, mas a nossa empregada muda as camas às quintas feiras por causa das minhas superstições – e rimo-nos muito e ele vai adormecer com canela na cama, e lá estávamos nós debaixo dos lençóis à luz da lanterna, eu a ler as palavras difíceis, ele a ler as fáceis e o herói da história chamava-se Jonas, olha mãe tem a letra do nome do pai e durante um centésimo de segundo eu fujo debaixo dos lençóis e penso que devia querer entregar-me a ti, e rápido, rápido, volto e digo sim, que esperto que tu és, já sabes ler, e o meu coração, nitidamente dividido em duas partes, onde uma não tem interferência com a outra, mas estão juntas e são inseparáveis, como compete aos ventrículos e às aurículas.
E mãe, conta-me uma história e que seja de Digimons e Pokemons, e lá invento eu uma história de amor, sempre uma história de amor, entre meninos Digimons e meninas Pokemons e adormecemos, ele encostado a mim e rapidamente me assolam aqueles sonhos e não estamos sozinhos na cama, há mais duas pessoas que se nos aconchegam só procurando calor e eu conto outra história, passada noutro planeta onde não há vida nem morte. Só querer. E o querer é mais forte que tudo e basta as pessoas quererem com força e conseguem o que querem e são felizes e adormecem quentes e calmamente dormem de forma repousada a noite inteira.
E eu durmo e acordo, como se estivesse numa pista de automóveis e periodicamente passasse pelo mesmo sítio. E penso. Penso em Santiago de Compustela: sempre lá quis ir, desde há imenso tempo que o projecto ganhou forma na minha cabeça, mas agora tenho um motivo para lá ir: ganhei o motivo naquele domingo, 11 de Novembro, quando tu não paravas de me telefonar, e dizias-me coisas que me punham louca de felicidade e à noite vim ter contigo e queria sentir aquela proximidade, aquela sensação de ser um corpo só, dividido em duas pessoas e a certeza tão certa que se naquela noite tivéssemos feito amor, tu dentro de mim e eu a acolher-te, não teria sido sexo e sim um mergulho no mais fundo do olhar de cada um, um mergulho que podia ter demorado horas, pois a dádiva do momento seria oxigénio suficiente para o resto da vida, e se houvesse gotas de suor a escorrer pela pele não se saberia qual a sua proveniência, porque os dois eram um e nem sequer haveria orgasmo porque a essência do acto era o mergulho no olhar, o mergulho um no outro e nada mais era preciso.
E no dia seguinte, telefonarias e eu pensaria, não, não era possível que fosses tu a telefonar, e não, não era possível que tivesses dito o que disseste, tu sentias mesmo o que dizias sentir por mim? e repetias que era a primeira vez que percebias a profundidade do teu sentir e eu, que tinha vivido tempo sem fim à porta do inferno, agora sentia abria-se a porta do céu e lá estava eu com as minhas dúvidas, estúpidas dúvidas, mas depois lembrei-me, não sei porquê, duma vez na Tunísia, onde encontrámos um homem que dizia ser um famoso trapezista que tinha actuado nos principais circos da Europa e toda a gente gozou com o homem e eu fui a única pessoa que o escutei e deliciei-me com as histórias que ele contou e quase chorei quando ele, no final me disse que tinha abandonado o circo porque tinha tido um acidente, motivo pelo qual coxeava, e todos os que me acompanhavam já não se lembram de nada e eu acredito que conheci o Leão da Tunísia e com ele falei e ele contou-me a história da vida dele pessoalmente e eu fiquei mais rica porque acreditei e acredito. Acreditar pode ser uma coisa poderosa. E eu acredito.
Não podiam ter mandado outra pessoa a Bruxelas? Volta... preciso de falar contigo, de viva voz e não só através destas intermináveis cartas que te escrevo sem parar e que tenho dúvidas se as lês... temos tanto para conversar...
(Acho que) Amo-te ... mas não tenho a certeza.
Camila

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