quarta-feira, 10 de março de 2010

É a vida...

Comecei ontem a fazer uma formação, pós-laboral, e o primeiro dia foi auspicioso.
Não por causa da matéria, nem do formador, nem dos colegas, apesar de serem todos muito bem dispostos e com muita informação para trocar. O interessante da coisa deu-se quando saí e estiquei o braço para mandar parar o táxi que vi aproximar.
O táxi até parou mesmo à minha frente, mas por causa do sinal vermelho. Com a pressa, nem reparei que estava ocupado.
Já eu desviava o olhar tentando desencantar uma luzinha verde no telhado dum carro quando a porta do pendura do táxi, se abre e vejo umas belas pernas tapadas por uns collants de renda pretos emergirem de dentro do veículo.
Ia desviar novamente o olhar quando percebo que a dona das pernas fala comigo:
- Quer um táxi, não é?
- Sim... – balbuciei.
- Então venha neste... não se importa de me deixar um bocado ali mais em cima?
- Não, de modo algum – respondi eu cheia de fome e com pressa em chegar a casa.
Lá entrei, o táxi arranca Almirante Reis acima e o taxista pergunta-me o destino.
- Amadora – digo eu e acrescento – desculpe... estou tão cansada que nem me lembrei de dizer para onde quer ir.
A senhora vira-se para trás com um ar cândido, que me fez sentir ser a filha daquele casal e, por instantes, suspeitei que me diria, como quem diz a uma criança no banco traseiro:
- Põe o cinto!
Mas, ao invés, solidarizou-se com o meu cansaço e perguntou:
- Mora na Amadora? Ai tão longe e vem para aqui todos os dias trabalhar, não? É a vida...
- Por acaso não venho para aqui, vou para o centro de Lisboa, mas é muito rápido...
- Pois, com metro e essas coisas, não é?
- Sim, apanho os transportes públicos, mas já agora digo-lhe que já morei em Sintra e trabalhei em Almada e apanhava todos os dias dez meios de transporte. Quem precisa tem que fazer sacrifícios...
E então ela responde da seguinte forma:
- A quem o diz... olhe, eu trabalho ali ao pé do Técnico, aliás, é para lá que vou agora... e são noites e noites em pé ao frio e ao vento, e de Verão, é calor até dizer chega... é isso mesmo, é preciso fazer sacrifícios.
O taxista conduzia calado e eu calada fiquei sem saber o que dizer, até que acrescentei repetindo as palavras dela:
- É a vida...
Dois minutos adiante, depois de virarmos à esquerda a seguir ao antigo Império e de termos subido a Alameda, o taxista encostou ao passeio, a senhora virou-se novamente para trás e disse:
- Linda, obrigadinha por este favor... – e virando-se para ele e para mim em simultâneo continuou falando do taxista – ele agora vai mais aliviadinho, vão com Deus, façam boa viagem, vão com Deus.
- Boa noite – despedi-me eu
- Eu depois ligo – despediu-se ele
O sinal estava vermelho o que me deu tempo de a ver afastar-se um pouco e rever as pernas só com os collants pretos de renda, em cima duns saltos agulha e o resto dum guarda roupa típico da sua profissão.
Enquanto isto o motorista achou por bem esclarecer-me:
- Não é flor que se cheire... mas eu preciso dela, sabe, ela faz-me uns favores e...
E o homem falava e eu via o Kevin Spacey, mergulhado na personagem de Eugene Simonet, em Favores em Cadeia e tentava perceber qual seria a minha personagem...
- Claro, é a vida – repetia eu como se tivesse ficado sem vocabulário e só pudesse recorrer àquela frase – temos que nos ajudar uns aos outros – acrescentei sentindo-me uma idiota com a profundidade versus banalidade da frase.
Porém, reparei que ele estava mais embaraçado que eu e ouvi-o dissertar sobre o que faria no dia seguinte, como quem não quer dar espaço de conversa ao outro, para não ouvir o que não quer. Mesmo que fosse o silêncio.
Aqueles minutos foram como uma cena dum filme onde fui apanhada por acaso, um bocado à Woody Allen que, dizem, dá as deixas aos actores e deixa-os representar sozinhos, duma forma espontânea.
Tenho imensa pena da formação não ser de escrita criativa ou qualquer coisa semelhante, caso contrário, teria aqui material para explorar, dar e vender, até sabe Deus quando.
É a vida...

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