segunda-feira, 8 de março de 2010

Noite de Óscares

Não vi a cerimónia - longe vão os tempos em que ficava acordada a noite toda, até muito depois daquilo ter acabado, a sonhar com filmes, actores ou realizadores. Porém, achei que fazia sentido colocar aqui um texto que escrevi há uns meses sobre um dos filmes a concurso: Sacanas Sem Lei.
Um filme bem feito, literalmente a ponto cruz, mas sem puxões nem linhas arreganhadas.
O interesse da coisa começa com as primeiras letras do genérico: usam uma fonte que nos remete para os western spaguetti do Sergio Leone e a música leva-nos para esses anos 60... depois, devagar, como quem nos quer apanhar desprevenido, mudam para uma fonte que é indubitavelmente associada ao Padrinho... termina com Garamond, letra usada por quem escreve... a meio aparecem de vez em quando legendas cuja ideia original ainda não processei bem (é claro que o verei uma segunda vez... acho que houve coisas que me escaparam). Conclusão: o filme mostra as suas influências, ou do realizador bem entendido, sem vergonha de afirmar que tudo o influencia, desde o ridículo até ao intrínseca e supremamente mau da natureza humana, formas e conteúdos históricos a mesclarem-se numa narrativa onde a violência e a comicidade andam de braço dado. Culmina com a estória do filme em si, que alterna entre momentos burlescos e chocantes: o protagonista, com cerrado sotaque do Tenessee, quer fazer-se passar por italiano, sabendo apenas dizer Grazie ou um caçador de judeus que mata uma família judaica duma forma que cada bala parece entranhar-se no nosso próprio corpo.
O filme processa-se como se estivessemos a ler um livro e à medida que avançamos na leitura vamos imaginando as cenas na nossa cabeça. O realizador até nos ajuda nesta tarefa, fazendo as entradas dos capítulos... ou seja, logo aí, há uma marcada 'esperança' que 'aquilo' não seja visto/lido por todos da mesma forma, faço-me entender?
Os momentos cómicos dum filme sobre uma equipa cujo único objectivo é matar nazis, são colocados nos momentos certos, pertencem àquele lugar e não os senti como um aligeirar da acção, nada disso: estão lá pois a imaginação dos resistentes seria de tal ordem que recorreriam a tudo, literalmente tudo, para acabar com a guerra e terminar com o sofrimento das populações. Duma forma, aparentemente, idiota e desenquadrada os westerns estão sempre presentes pois os caçadores de nazis arrancam-lhes o escalpe. Noutro filme, todos viraríamos a cara perante tão violento comportamento e tão brutal exibição de imagens, mas aqui não. Em toda a sala às escuras sente-se uma onda de regozijo.
Há uns anos vi um filme sobre o Holocausto que se chamava A Vida é Bela: uma parvoíce em três actos, como se costuma dizer e, de certa forma, um atentado à homenagem que aquelas pessoas nos merecem. Nunca percebi como pode ser tão aclamado e adorado.
Ontem havia um coronel alemão, um caçador de judeus, com uma personalidade marcante e empática que não mais esquecerei: simpático, inteligentíssimo, com uma perspicácia fabulosa, nada fictícia. Imagino que os verdadeiros caçadores de judeus fossem assim mesmo, que conseguissem fazer com que confiassem neles, que conseguissem cegar as pessoas a tal ponto, de modo a que só vissem uma sua faceta e os fizessem colaborar nas suas maquinações. Esta personagem é a fixar, definitivamente, interpretada por um actor austríaco fantástico, que merece meia dúzia de óscares. É a fixar para nos lembrar que a maldade tem qualquer cara. Ele falava e quase se lhe podia ler o pensamento, negro e sedento de sangue, sedento de fim, completamente oposto ao seu sorriso, desadequado da musicalidade do som das suas palavras, nos antípodas dos seus gestos cavalheirescos, dissidente da sua postura.
A acção desenrola-se e termina concretizando um sonho comum ao mundo inteiro: a morte de Hitler e dos seus principais sequazes. Um Hitler chapliano e esganiçado (outra influência que me esqueci de referir). Pelo menos ali, durante alguns segundos, é como se nos dessem uma prenda e suspirássemos de alívio: o cabrão morreu e a guerra acabou! Naquele instante acreditamos que foi assim, que é assim! Ah, que bom... pensamos todos em uníssono desejando ardentemente viver aquele dia, sair do cinema aos gritos e poder dizer que assistimos à morte do fuher, empunhar bandeiras pequeninas e fazer festas de rua, ir a correr comer e beber, sem fazermos a mais pequena ideia do que são senhas de racionamento, rasgar os pijamas às riscas e atirar as estrelas ao ar, esperando que fiquem lá em cima, no lugar delas...
Mas o momento supremo do filme, e aqui na minha opinião, é que o final não se passa na tela e sim em cada uma das nossas confortáveis cadeiras onde estamos sentados e isto é que é a substância dum bom filme: é-nos dado a ver a morte de três centenas de pessoas - através da acção da vingança duma judia e do grupo de caçadores de nazis - e nós simplesmente adoramos e não nos sentimos repugnados por ver uma sala de cinema inteira a arder - igual aquela onde nós próprios estamos! De certa forma nós somos também o instrumento da matança, o nosso olhar é cúmplice e associa-se prazenteiramente às chamas que consomem os corpos, satisfazemo-nos com os gritos suplicantes dos que batem nas portas previamente fechadas, sorrimos ao fumo que asfixia aqueles pulmões. Afinal, são só nazis...
Sentimos uma empatia com a rapariga judia que consegue levar a bom porto a sua vingança e mesmo quando ela morre sentimos que valeu a pena porque no fundo, no fundo, o que nos sacia é a vingança... não devia ser a justiça?
O ódio aos nazis é supremo e supremas são as medidas a tomar. Mas isso não faz de nós nazis? Não sei. Sei que me perturbou bastante este filme, que pretendo voltar a ver para melhor garantir que nada me escapou, pormenores que podem ter-se escapulido por entre a minha admiração e estupefacção de estar a fazer duas coisas em simultâneo: ver um filme e ler uma mensagem forte sobre a natureza humana, com escapes de riso que mais não são do que armadilhas, colocadas pelo realizador para distrair o espectador, e testá-lo se está de facto atento ao essencial. E o essencial é que somos todos naturalmente maus. O essencial é que não perdoamos. O essencial é que só nos satisfazemos com vingança. O essencial é que a preversidade muda de roupa quando aplicada a diferentes situações.
Fonte da imagem: http://www.idademaior.iol.pt/albuns/sacanas-sem-lei-album/2

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