Ontem fui fazer uma caminhada orientada. Por norma faço-as ao sabor dos meus pés e começam e terminam quando as botas ou os ténis e eu determinamos. Ontem foi diferente. Arrastei a I., para não variar, mochila com maçãs, garrafa de água e chapéu-de-chuva e, por incrível que pareça, quem levou o chapéu fui eu, o que é motivo de espanto até para mim própria.
Recomendo as passeatas do SAL por várias razões: são saudáveis, culturais, o pessoal do SAL é bem disposto e, muito importante este último aspecto, é barato.
Mas no meio da boa disposição e saudabilidade do passeio, das escorregadelas na lama, dos saltos de poça em poça, das corridas para procurar abrigo ou para acompanhar melhor o resto do grupo, tive um desaire e tenho um adeus em perspectiva, (dois, se contar com a televisão).
As minhas botas maravilha deram o último suspiro e já em casa receberam a extrema-unção sob a forma de lágrimas.
Foram uma prenda de Natal da minha irmã há mais de dez anos. Chegaram-me às mãos e entraram-me nos pés na minha antiga casa do Alentejo, num Natal em que fomos à Missa do Galo e durante a qual o gordo tronco que ficara ao lume resvalou e encheu a casa de fumo. Quando chegámos, depois duma missa onde o padre enumerou todos os anjos e santos do Olimpo cristão, numa lista tão longa como a Linha do Equador o que nos provocou muita gargalhada, sempre reprimida sob o olhar do nosso pai, não se via nada e pensámos que a própria casa estava a arder. Afinal era só fumo. Foi a primeira aventura das botas. Depois sucederam-lhe tantas que são inumeráveis, tantos quilómetros, tantos países, tantos passeios, tantas caminhadas.
Há três ou quatro anos na Jordânia tiveram uma síncope que me fez sangrar os pés: estávamos em Petra com um calor vindo da antiguidade dos Nabateus mas mesmo assim aguentaram, elas e eu; chegadas a Portugal foram directas ao sapateiro que lhes fez uma prótese interna e que durou até ontem. Não vale a pena operar de novo, sei que não aguentarão. Tenho fotografias com elas na Praça Vermelha, na Muralha da China, em Istambul, em Petra, no norte de África, numa Córdova chuvosa mas onde estava de calções e de tranças e onde fiquei com o melhor ar que se possa imaginar, como se as botas fossem mais que um calçado, como se fossem um pedestal. Esta fotografia, onde estou ao lado do pai do Duarte, está em lugar de destaque e o que se destaca são as botas.
Das várias lavagens foram ficando com manchas, algumas das quais nunca saíram. Aguentaram a minha loucura duma semana num barco nos Açores atrás duma baleia de bossa, onde só vinha a terra para dormir e caminhar ainda mais.
Com estas botas calçadas sentia-me em casa estivesse onde estivesse. Eram seguras, confortáveis e de confiança.
Vão ter que ser substituídas mas não serão enterradas. Ficarão como o Lenine ou o Mao, numa espécie de embalsamamento, para que possam ser vistas, não por quem pague depois duma espera numa fila, mas por quem mereça.
Se estas botas falassem poderiam ditar um livro, vários números de revistas de viagens e poderiam rir-se, por exemplo, de quando dormi calçada com elas num tugúrio em Roma cuja porta não fechava ou quando saí do quarto a correr com os atacadores desatados em Dubrovnik porque alguém confundiu uma trovoada seca com um ataque e deram o alarme no Hotel onde eu estava. Já me fizeram de cabeceira também, e que bem que exerceram essa função. Essa e todas.
Agora ficarão como os amantes de Catherine Deneuve em Fome de Viver, para sempre comigo.
quinta-feira, 9 de dezembro de 2010
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