quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Cegos somos todos

Diariamente no Metro da cidade de Lisboa ouve-se uma ladainha triste e repetitiva: são os cegos pedintes que acompanham o bater da bengala nos ferros dos bancos e nas pernas dos passageiros com pedidos de ajuda. São homens e mulheres, novos e velhos. De entre eles destaca-se um que grita obscenidades se nada lhe dão. A populaça assim que o vê entrar faz milagres e mesmo que a carruagem vá cheia consegue-se sempre fazer aparecer um caminhito livre para ele passar, de preferência só pedindo e não insultando.
Para além dos cegos há os que se fazem acompanhar dum cão que carrega um pequeno balde na boca, onde é suposto colocarmos as moedas, há os tocadores de concertina e de acordeão. Há quem substitua o cão por uma criança pequena.
A cada um que passa, e chegam a passar vários no decorrer duma viagem, seguidos, como se fossem personagens duma curtíssima metragem que está sempre a ser exibida, termina e volta ao princípio, encho-me de tristeza e penso na minha maravilhosa vida, maravilhosa é pouco, e tenho uma enorme dificuldade em colocar-me naquele lugar, eu que tão facilmente me coloco no papel dos outros. A agonia que me sobe, a tristeza profunda que me invade, a impotência que me domina ao pensar que podia ser cega são tão grandes que sinto desfalecer. É-me extremamente difícil transformar em palavras o turbilhão de sentimentos que me assaltam quando penso no assunto. Sinto-me fraca demais para ser cega, sinto que não conseguiria encarar a vida, por falta de força.
Todos os pedintes são corajosos, pedir não é fácil e nunca penso que estou a ser enganada, como já me avisaram, com palavras que pretendiam ser protectoras mas que só conseguiram a minha ira. Um pedinte cego é alguém perante quem eu baixo o olhar, não para o desviar, mas por ter dificuldade em sustentar a falta de visão que terá proporcionado aquela vida. Quero não ter pena, no sentido galináceo do termo, mas sou inundada por ela, no sentido do respeito.
Há dias entrou no Metro um casal de cegos que se colocou mesmo à beira da porta. Não tardou, entrou um cego pedinte a quem os outros dois dirigiram palavras imprudentes, penso eu, em surdina, escárnio sussurrado. O cego pedinte ou não ouviu ou fingiu que não ouviu e desempenhou o papel do costume. Atónita, lembrei-me duma personagem do Vai Tudo Abaixo, o Black Skin, o preto mais racista com pretos que se pode imaginar.
É claro que se valoriza o esforço pessoal de cada um e um cego saberá fazer várias coisas melhor que alguém que nunca precise de óculos; é claro que as pessoas sejam quem forem, com deficiências físicas ou não, têm que se empenhar para não passarem na vida simplesmente a respirar; é claro que há exemplos de ‘sucesso’ de pessoas cegas com percursos cheios e que nunca pediram anda a alguém, que venceram sozinhas batalhas de vida. Há exemplos de tudo, como nos catálogos das farmácias. Mas naquele momento senti uma irritação crescente por constatar que estava diante de alguém que se sentia superior a outrem e se há coisa que mexe comigo é alguém pensar-se superior seja a quem for, pela simples razão que se mentem a eles próprios e, com a alcandorice da atitude, ficam cegos.

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