quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Música de rua

Quando andava no 12º ano na Cidade Universitária e usava a estação de metro de Entre Campos, tinha uma colega que entrava no corredor do Metro e começava a chorar quando encontrávamos alguém que brindava os transeuntes com trechos musicais. Ora, eu que sempre me desfiz em lágrimas quando ouço música na rua e tentava esconder aquilo que considerava uma fraqueza, dei por mim a dar-lhe força e a dizer-lhe que não era motivo para ficar naquele estado. Cá dentro ardia como se estivesse no inferno e cheguei a sugerir-lhe que mudássemos o percurso para que ela não desatasse a chorar quando, na verdade, o que queria era proteger-me a mim própria.
Durante estes 20 anos sempre que encontro alguém a tocar no meio da rua lembro-me dela. A Teresa do Cartaxo, como lhe chamávamos e como a continuo a lembrar por não lhe saber o apelido e por ela ser do Cartaxo, esteve na minha lembrança nos mais desvairados locais, como Saratov onde os passeios estão pejados de gente que toca violoncelos e violinos como aqui há buracos na rua, ou em Helsínquia onde as pessoas paravam para ouvir deliciadas, eu em êxtase, um trompetista, ou em Cracóvia, ah, Cracóvia, onde o meu ainda marido comprou e me ofereceu (é verdade!) um CD caseiro com as músicas que os artistas debitavam naquela praça cuja lembrança me rasa os olhos de água. Admirava a Teresa porque ela era capaz de fazer o que eu não conseguia: mostrar de forma aberta e espontânea a sua humanidade, desfazer-se em lágrimas com a beleza das coisas, dar asas aos sentidos e deixá-los usufruir do belo.
Não consigo descrever o prazer que sinto ao ouvir música na rua e durante algum tempo a minha irmã fazia uma coisa fantástica e inolvidável: seguia três passos atrás de mim a cantarolar qualquer coisa que eu gostasse! Para além da sublimação desta acção que fazia com que as pessoas olhassem para nós como se estivessem a ver um filme, eu sentia-me a protagonista duma película em forma de livro raro, só com uma edição e só com um exemplar, impossível de reproduzir e recriar!
Uma das coisas que os filmes têm que em nada são reais mas que nos ajudam a prender ao ecrã é a música que acompanha qualquer cena, como se a própria música fosse uma personagem imprescindível à acção. Apesar de ser uma ilusão que, contraditoriamente, pretende imbuir-nos de verdade para nos ajudar a acreditar na invenção que criaram para nós, a vida devia ser assim, com música.
Em casa tenho o privilégio de ouvir música seleccionada pelo meu filho, num mix que mistura o que ele gosta com o que gosto e que passa directamente da voz rouca e lenta do Elvis a debitar Love me tender para um qualquer tum tum tum digno da discoteca de adolescentes mais na berra, mas adoro ouvir rádio porque nunca sei o que vem a seguir, como se me depositasse nas mãos dum desconhecido produtor radiofónico e aceitasse ser embalada pela música que escolhem. Viver e respirar ao som do inesperado, agora com uma balada, a seguir com uma rockada - e ficar danada quando uma música é interrompida por um noticiário ou pior, com publicidade. Tudo tem o seu preço.
Não sei tocar qualquer instrumento com imensa pena minha, mas se tocasse adoraria fazê-lo na rua e partilhar um intenso prazer meu com o mundo anónimo.
Abraço para a Teresa, esteja onde estiver.

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