Quando alguém sabe que tem uma doença assustadora que o conduzirá à morte num curto espaço de tempo, as reacções podem ser muito diversas e podem oscilar entre o suicídio imediato e o querer viver depressa, o que se poderá traduzir em viajar ou fazer coisas que sempre se quis e nunca se fez.
Mas o que se deve fazer quando se sabe que se está num processo de degradação cujo percurso brevemente não se acompanhará, porque deixaremos de ter consciência dele, precisamente por causa dessa doença?
Saber que se tem uma doença mortal faz-nos pensar num fim, fim esse cuja essência é a morte. Acabou, não há mais coisas boas, nem más, não há mais nada. Mas saber que se vai continuar a respirar sem ter consciência que existimos, sem controlo de acções, de comportamentos, saber que isso pode já estar a acontecer, sem que nós o saibamos, duvidar de cada instante do nosso dia-a-dia, se foi real ou só aconteceu dentro da nossa cabeça, é viver num limbo para o qual não encontro nome.
Numa primeira fase sabemos que estamos vivos mas não sabemos se tudo é verdade à nossa volta. Perguntamo-nos se já começou... Aos primeiros esquecimentos ou tentativas infrutíferas de percorrer a memória entra-se num pânico difícil de controlar. Não se sabe onde se está, fala-se devagar para perceber se as reacções dos outros nos parecem normais e é em função delas que avaliamos a nossa própria normalidade.
Sabemos que estamos a morrer mas não sentimos nada, deixamos esse trabalho aos outros, cujas tarefas serão incalculavelmente grandes mas das quais nem daremos conta pois estaremos noutra dimensão.
O que quero dizer, onde quero chegar é à consciência que se tem no momento em que a doença é diagnosticada e os médicos dizem que se está a entrar num túnel do qual não mais se vai sair, mas não perceberemos nada, como se fossemos anestesiados e nos virássemos para dentro de nós, expulsando o resto do mundo do nosso mundo, encurtando o mundo, criando outro mundo, vivendo num mundo diferente.
É assustador.
O que fazer? Viajar? Viajar muito e a correr, como quem tenta fugir a um terramoto ou como quem corre adiante das ondas imensas e engolidoras dum tsunami? Ver pessoas que não vemos há anos e dizer-lhes como nos lembramos delas? Pagar promessas? Virarmo-nos para a religião? Tem que se decidir depressa pois em breve não haverá consciência de nada, como se embarcássemos numa nave espacial adormecidos até ao dia em que o nosso coração pare e deixemos também de ser vegetais.
Ouço uma estação de rádio que só dá música antiga e que me trás à memória lembranças de mil coisas, que relaciono com outras mil. Penso nos milhões de coisas que se perdem num processo destes, tenho vontade de chorar, sinto faltar-me a respiração e depois penso que as pessoas com estas doenças não se lembram de nada e por isso é terrível saber-se o futuro, porque o momento actual, mesmo que se faça muita força para não pensar nele, projecta-nos para o nada do futuro, um futuro vazio e seco, estéril, um futuro que, a bem da verdade, não existirá, mas é para lá que vão as pessoas assim e hoje elas já o sabem e isso custa tanto, dói, com dores incomensuráveis, que parecem antecipar o que não queremos pensar que vai chegar, mas é para lá que se caminha e a pescadinha de rabo na boca enrodilha-se-nos ao pescoço e o sufoco é cada vez maior, tão grande, tão grande, tão grande.
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