Entro no metro e vejo as cabeças das pessoas como uma seara ao vento, ondulando todas na mesma direcção. Também eu sou atraída pela visão que se proporciona, na figura dum parzinho, ele inglês, ela portuguesa a procurar as palavras inglesas no meio dum imaginário dicionário, talvez da Porto Editora.
Ela trajava de encarnado, vestido com saia rodada muito curta, qual bailarina, leggings encarnadas por cima das quais uma meias pretas de renda se abriam com mais e maiores buracos do que aqueles que o fabricante originalmente lhe dera. O cabelo, para variar um pouco, também era encarnado! Do alto da cabeça pendiam dois puxos ou minis rabos-de-cavalo e no lugar duma eventual bandolete estava um par de óculos que deviam ter pertencido à dupla Sacadura Cabral e Gago Coutinho e que me deixaram verde de inveja! Por cima daquele cenário via-se ainda um blusão de pele, vermelho, e botas pretas de meio cano.
Ele vestia de preto da cabeça aos pés, peles e ganga, com uma corrente de metal que nascia a meio do casaco e terminava algures nos bolsos de trás e não me parecia que fosse do relógio.
Mas o mais fulgurante na dupla de Stendhal era o cabelo dele que me deixou muda e queda: os lados eram louros a atirar para o branco e a meio passava uma estrada negra, acabada de alcatroar. O alcatrão devia medir cerca de meio metro e estava magnificamente espetado em crista. Os dois lagos gelados brilhantes do sol ostentavam pequenos bicos, como galaroiços cujos penachos ainda estivessem a crescer.
Quando a carruagem chegou e as pessoas entraram os dois lugares frente a eles ficaram vagos, não obstante ir muita gente em pé. Sentei-me diante deles e não abri o livro. Olhei-os esperançada em arranjar coragem para lhes dizer como estavam um assombro.
Por cima de toda a pompa da poupa dele havia ainda duas antenas que lhe caiam perto da boca e que provinham da floresta negra, como se fossem saídas de emergência da auto-estrada. Aqueles dois fios de cabelo abanavam ao menor movimento dele ou do comboio e davam-lhe o ar duma joaninha gigante. O nariz tinha mais piercings do que todos os que vi na minha vida pois as narinas pareciam pregadas à cara com tachas negras e não pela dinâmica de pele, ossos e cartilagens ou lá o que se esconde debaixo da penca das pessoas. Tudo isto encimava numa pele muito branca e olhos tão claros que me remetiam para a transparência.
Estava eu a preparar o discurso para lhes dizer que nunca tinha visto alguém assim e que me sentia no subway em Nova Iorque, muito longe duma estação chamada Carnide, quando eles se levantaram e saíram no Colégio Militar.
No dia seguinte tive a esperança de os reencontrar e ia decidida a falar-lhes assim que os visse, mas tal não aconteceu, nem no dia seguinte, nem no outro.
Gostava de conversar com alguém que manifesta desta forma a sua alternatividade, sem ligar aos olhares que até furam paredes e indiferentes às palavras sussurradas entre sobrancelhas carregadas e pensamentos de horror.
Porque achamos sempre que o outro é mau? Ou, no mínimo, que somos melhores que o outro? Porque tendemos (tender é generosidade…) para nos colocar por cima tendo como critério, quantas vezes, apenas o testemunho do nosso olhar? Porque pensamos, mesmo inconscientemente, que sabemos tudo e manifestamos certezas de superioridade perante os outros?
Peço desculpa às pessoas com quem me envolvo em discussões por causa deste assunto, mas tenho a cabeça dura e não me entra com facilidade a facilidade com que falam e fazem juízos de valor sobre o que achamos que é a verdade, quase sempre tendo como barómetro a nossa pessoa. Porque é que os nossos olhos vêm melhor, o nosso nariz aspira com mais precisão, o nosso ouvido é o menos mouco, a nossa pele a mais sensível, a nossa língua a mais temperada? Com tanto milhão de gente no mundo, porquê nós? Porque é fácil!
Quantas vezes gostaríamos de ser diferentes, e seríamos se mudássemos, mas como não nos damos ao trabalho, criticamos os outros! É a fase da inveja mal dizente, dum certo GilVicentismo ou duma literatura da qual antes se tomava conta da sua existência na escola e agora pertence apenas ao Cemitério dos Livros Esquecidos, obrigada Ruiz Zafón por este ponto cardeal que tanto jeito dá.
Poucos amam a diferença na sua essência, o pólen da diferença, o distinto, o desconhecido, o que é novo e se lhe abrirmos os braços tornar-se-á amigo, vizinho, companheiro.
A facilidade em fazer garatujos de cantigas de escárnio emparceira com o medo do desconhecido, criando exércitos de descendentes da velharia do Restelo e transformando os outros que se atrevam a sair da linha em Adamastores.
Conclusão, eu adorava saber que cabeleireiro fez aquilo ao cabelo do rapaz, que mãos mestras conseguiram aquele feito que nem nos Festivais da Fiesa tenho visto coisa igual; gostava de saber se aquilo dura um dia ou dois ou mais, como dorme, quanto custa e quanto tempo demora a criar aquela crista genial com tanta cristinha filhote à sua volta; quanto gel é consumido e quais são os maiores constrangimentos que o penteado lhe provoca.
Já agora, se não lhe desse muita maçada, também gostava de saber qual a tirada mais cómica que já ouviu sobre ele. Calculo que sejam às pazadas.
É bom sabermos rirmo-nos de nós próprios.
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