Terminado o 12º ano candidatei-me à Universidade e fiquei logo colocada. Nos Açores...
O meu pai estava numa situação muito difícil, trabalhando mas sem receber há vários meses, e a nossa vida era tudo menos fácil. Porém, tudo foi feito para que eu conseguisse, da parte dos meus pais e dos avós maternos, o avô Gualdino a deixar escapar umas lágrimas teimosas, mas quem é que manda aqui?
Eu, com 17 anos, já me via numa ilha no meio do oceano, onde nunca tinha ido, e que me parecia uma mistura da mítica Atlântida com ecos de um tal Woodstock, fosse isto o que fosse. Mas e o dinheiro? Viagens e estadias e almoços e jantares e livros e fotocópias e tanta coisa a pagar e nós sem cheta.
Foi preciso garantir a inscrição para não perder dois anos sem me candidatar novamente. O meu avô queria que eu fosse, eu queria ir, mas percebia que era impossível.
Assim, informei-me e fiquei a saber que era preciso passar uma procuração a alguém que iria à universidade inscrever-se em meu nome e pagar as propinas. Eu faltaria às aulas mas no ano seguinte podia candidatar-me de novo, tendo assim muito tempo para rezar por um lugar no continente.
Então e onde se fazem as procurações? Nesta altura eu já sabia o que eram mas não sabia onde se faziam. Ouvira falar delas a propósito das casamentos das minhas tias cujos maridos estavam em África e para mim, inicialmente, os casamentos eram por coração, evidentemente, pois era óbvio, casamento, amor, amor, coração, estava tudo explicado!
Fui de imediato a um notário e quando entreguei a identificação disseram-me que não a podia fazer por ser menor. Teve que ser o meu pai a fazê-la, em nome de um colega do nosso vizinho do lado - os nossos conhecimentos dos Açores eram só geográficos - com os tempos próprios da altura: fazer procuração, enviá-la por correio, ser recebida, ir à Universidade, enviar os papéis para nós, enfim, uma grande trabalheira, mas que se fez. O colega do vizinho, que nunca conhecemos, recebeu uns garrafões de azeite feito pelo meu avô e uns chouriços alentejanos, pois nós dificilmente pagámos os selos da carta.
O tempo corria e o início das aulas aproximava-se trazendo uma enorme tristeza que voava para cima dos meus ombros.
Um dia fui à faculdade fazer companhia a amigos e vi a parede da Reitoria cheia de papéis colados das mais diferentes formas. Eram mensagens deixadas por quem tinha ficado em Coimbra ou no Porto e queria vir para Lisboa e vice versa. Li-os ansiosa mas ninguém viera dos Açores pregar um papelucho para deixar a capital. Ainda assim, pensei que não tinha nada a perder e deixei lá o meu próprio papel: S. Miguel troca com Lisboa.
Dois ou três dias depois recebi no nosso belo telefone preto de disco um telefonema de um estrangeiro qualquer. Era obviamente engano. O estrangeiro voltou a ligar e no meio da estrangeirada disse qualquer coisa que soou ao meu nome. Já pronta a desligar, apurei o ouvido e sim, era mesmo verdade, o alemão ou lá o que era, disse mesmo o meu nome assim como outras palavras soltas em português: universidade, Açores, quero, Peixoto.
Estando eu tão calada de telefone ao ouvido o meu pai quis saber quem era e eu passei-lhe o telefone. Não é que o meu pai falasse outra língua além do português mas, vá lá saber-se como, entendeu: era alguém que tinha ficado em Lisboa e queria ir para S. Miguel!
Ao telefone estava o próprio, a ligar de um hotel no centro de Lisboa, passou a chamada à mãe, que continuou a conversa com o meu pai e hora e meia depois estávamos os quatro sentados no átrio do hotel, sorridentes e a combinar a transferência recíproca.
À excepção de um único apelido, o nome do rapaz era igual ao do Bocage, coisa que o meu pai fez imediatamente saber e que me levou a decorá-lo até hoje, apesar de ter ficado para sempre o Manel dos Açores.
A mãe do Manel dos Açores disse que ele ficaria instalado no hotel até tudo estar resolvido mas o meu pai, num excesso de boa vontade, disse que não, nem pensar, ele ficará lá em casa, seguido de um olhar que me silenciava, pois as perguntas já me saltavam da garganta: onde? Nós éramos cinco e os almoços eram aguados, não passávamos fome mas tudo era racionado.
Como foi dada a ordem para não se falar mais nisso, o Manel mudou-se lá para casa de armas e bagagens, tendo ficado no quarto da minha irmã que se juntou a mim e à N. A ideia era irmos ambos às aulas enquanto tudo não estivesse resolvido, altura em que ele iria para os Açores mas com a matéria debaixo do braço. A mim bastava-me continuar.
Nos primeiros dias fomos juntos mas ele começou a preguiçar e eu comecei a ir sozinha e a responder - e a explicar - porque dava pelo nome de Manuel Maria Barbosa Peixoto.
Eram risos só superados por um colega que se chamava Jesus Roque e a quem os amigos teimavam em interromper as aulas, metendo a cabeça pela porta e perguntando aos professores se podiam falar com o menino Jesus...
O Manel dos Açores vivia melhor que nós e não tardou a fartar-se dos almoços que a minha mãe deixava. Um dia levantou-se e torcendo o nariz ao espreitar a panela perguntou-me se não queria ir comer arroz de marisco. Eu nunca comera arroz de marisco na minha vida e noutra altura teria aceite a correr, mas disse imediatamente que não, que o meu almoço estava ali. Porém, fui convencida a fazer-lhe companhia e, já almoçada, fui com ele a um restaurante onde o vi comer um pouco de tudo o que havia na secção de mariscos, com vinho branco que também não provei. A vontade era enorme e fez-me implicar com ele as duas horas que ali estivemos. Naquele momento odiava-o e odiava-me a mim: por ter comido o guisado aguado, por não dar o braço a torcer, por o achar um ingrato. Ainda por cima ele era daquelas pessoas que mastigam cem vezes cada garfada e eu sorvia a comida, o que só serviu para embirrar ainda mais com ele, lento, pastelão, molenga.
Eu escondia dos meus pais estas atitudes dele, pensando que iam ficar magoados, e eles pagavam ao Manel em passeios a qualquer lugar onde ele quisesse ir, apesar dos fracos cobres com que vivíamos. Valia o facto de o meu pai ter poucas folgas, sempre a trabalhar em dois empregos, a nossa salvação, eu era menor não tinha carta de condução, logo só saíamos mesmo em dia de festa. Um destes dias o Manel disse que nunca fora ao Cristo-Rei. Ai não? Logo ali se organizou a excursão, os meus pais, nós as três e o namorado da N., ao todo sete pessoas no Ford Kadett encarnado comido pelo sol. Chegados aos pés do Cristo, ele subiu, com a N. e o namorado, que lhe pagou o bilhete. Nós manifestámos o nosso velho conhecimento do monumento e deixámo-nos ficar encostados ao carro.
Vistas as vistas, desceram e, passando Almada, o Manel viu uma placa a dizer Costa da Caparica, ficou eufórico com a proximidade e disse ter lá um grande amigo. O meu pai rumou então à Costa e, à entrada, já nas Terras da Costa, perguntou onde morava esse grande amigo. A resposta provocou um silêncio seguido de uma gargalhada geral:
- A morada não sei, mas ele tem uma mota encarnada, não deve ser difícil de encontrar.
O meu pai abrandou, parou o carro, virou-se para trás para o amontado de nós e perguntou-lhe se ele tinha ideia de quantas motas encarnadas existiam na Costa, se ele tinha noção do tamanho da vila, se alguma vez lá fora. Três nãos.
Virou-se para a frente e foi conduzindo devagar, Oh Manel, isto nem parece seu. Mostrámos-lhe o mar e regressámos a casa, cheios de rugas na roupa, a N. bem apertadinha junto do seu A., a minha irmã no banco da frente ao colo da minha mãe e eu de trombas ao lado do palerma do Manel.
A estadia do Manel na nossa casa durou quase três meses, com esporádicas idas à Universidade e muitas discussões pois ele estava sempre pronto para sair e eu também, mas não tinha dinheiro para o acompanhar e não aceitava nada dele.
A N. um dia convenceu-o que sabia cortar cabelo e ele deixou que ela o pusesse com um ar muito avant garde, ou pelo menos foi isso que lhe dissemos, jurando que a moda em Lisboa era exactamente aquela.
Tirando a questão do dinheiro que para os meus lados era leve que nem uma pluma, até nos entendíamos e, talvez por isso, depois do adeus e do regresso aos Açores, poucas semanas depois ele voltou a Lisboa, foi visitar-nos e perguntou-me se queria casar com ele. Disse que não tencionava ficar em S. Miguel, que o Canadá o esperava, terra de grandes oportunidades, onde tinha amigos ou família, já não me lembro.
Um ano antes, durante o 12º ano, assistira ao casamento de uma colega de turma que para mim funcionara como uma coisa quântica, tão abstracta que eu não conseguia entender. O Canadá, as oportunidades, o ir embora, era tudo fantástico mas, tal como numa equação, havia um elemento que eu desconhecia, que me causava profunda estranheza, que não encaixava: casamento.
Ele insurgiu-se, afirmou não estar a brincar e eu ouvia um homem falar pensando que alguém o trocara no caminho porque quem se tinha ido embora era um rapaz na medida em que eu era uma rapariga, e essa coisa de casar era para velhos, não para rapazes e raparigas, a não ser que fossem loucos ou, como no caso da Adelaide, que a sogra fosse psicótica e insistisse no casamento imediato alegando ter visões que lhe diziam que o filho morreria em breve e se não casasse já, ela nunca teria netos.
Canadá, sim. Oportunidades, sim, também. Casar, não.
O Manel dos Açores foi embora, solteiro, e nunca mais o vi, nem nada soube dele. Comecei a namorar com outro Manel, continental, com quem casei e tive um filho. A N. casou com o meu queridíssimo A., e assim se mantém, com dois filhos maravilhosos, cuja amizade prezo imenso.
Há dois ou três anos um antigo colega do liceu conseguiu localizar a turma inteira e organizou-se um jantar no qual adorei ter participado: uns gordos, outros magros, outros parvos iguais ao que eram, uma camaradagem que não adivinhei manter-se depois de tantos anos. Pusemos a escrita em dia com as novas moradas, com os filhos, com os estados civis de casados e divorciados, com uma excepção: a Adelaide era viúva pois o marido morrera tal e qual como a sogra sempre previra.
O meu pai estava numa situação muito difícil, trabalhando mas sem receber há vários meses, e a nossa vida era tudo menos fácil. Porém, tudo foi feito para que eu conseguisse, da parte dos meus pais e dos avós maternos, o avô Gualdino a deixar escapar umas lágrimas teimosas, mas quem é que manda aqui?
Eu, com 17 anos, já me via numa ilha no meio do oceano, onde nunca tinha ido, e que me parecia uma mistura da mítica Atlântida com ecos de um tal Woodstock, fosse isto o que fosse. Mas e o dinheiro? Viagens e estadias e almoços e jantares e livros e fotocópias e tanta coisa a pagar e nós sem cheta.
Foi preciso garantir a inscrição para não perder dois anos sem me candidatar novamente. O meu avô queria que eu fosse, eu queria ir, mas percebia que era impossível.
Assim, informei-me e fiquei a saber que era preciso passar uma procuração a alguém que iria à universidade inscrever-se em meu nome e pagar as propinas. Eu faltaria às aulas mas no ano seguinte podia candidatar-me de novo, tendo assim muito tempo para rezar por um lugar no continente.
Então e onde se fazem as procurações? Nesta altura eu já sabia o que eram mas não sabia onde se faziam. Ouvira falar delas a propósito das casamentos das minhas tias cujos maridos estavam em África e para mim, inicialmente, os casamentos eram por coração, evidentemente, pois era óbvio, casamento, amor, amor, coração, estava tudo explicado!
Fui de imediato a um notário e quando entreguei a identificação disseram-me que não a podia fazer por ser menor. Teve que ser o meu pai a fazê-la, em nome de um colega do nosso vizinho do lado - os nossos conhecimentos dos Açores eram só geográficos - com os tempos próprios da altura: fazer procuração, enviá-la por correio, ser recebida, ir à Universidade, enviar os papéis para nós, enfim, uma grande trabalheira, mas que se fez. O colega do vizinho, que nunca conhecemos, recebeu uns garrafões de azeite feito pelo meu avô e uns chouriços alentejanos, pois nós dificilmente pagámos os selos da carta.
O tempo corria e o início das aulas aproximava-se trazendo uma enorme tristeza que voava para cima dos meus ombros.
Um dia fui à faculdade fazer companhia a amigos e vi a parede da Reitoria cheia de papéis colados das mais diferentes formas. Eram mensagens deixadas por quem tinha ficado em Coimbra ou no Porto e queria vir para Lisboa e vice versa. Li-os ansiosa mas ninguém viera dos Açores pregar um papelucho para deixar a capital. Ainda assim, pensei que não tinha nada a perder e deixei lá o meu próprio papel: S. Miguel troca com Lisboa.
Dois ou três dias depois recebi no nosso belo telefone preto de disco um telefonema de um estrangeiro qualquer. Era obviamente engano. O estrangeiro voltou a ligar e no meio da estrangeirada disse qualquer coisa que soou ao meu nome. Já pronta a desligar, apurei o ouvido e sim, era mesmo verdade, o alemão ou lá o que era, disse mesmo o meu nome assim como outras palavras soltas em português: universidade, Açores, quero, Peixoto.
Estando eu tão calada de telefone ao ouvido o meu pai quis saber quem era e eu passei-lhe o telefone. Não é que o meu pai falasse outra língua além do português mas, vá lá saber-se como, entendeu: era alguém que tinha ficado em Lisboa e queria ir para S. Miguel!
Ao telefone estava o próprio, a ligar de um hotel no centro de Lisboa, passou a chamada à mãe, que continuou a conversa com o meu pai e hora e meia depois estávamos os quatro sentados no átrio do hotel, sorridentes e a combinar a transferência recíproca.
À excepção de um único apelido, o nome do rapaz era igual ao do Bocage, coisa que o meu pai fez imediatamente saber e que me levou a decorá-lo até hoje, apesar de ter ficado para sempre o Manel dos Açores.
A mãe do Manel dos Açores disse que ele ficaria instalado no hotel até tudo estar resolvido mas o meu pai, num excesso de boa vontade, disse que não, nem pensar, ele ficará lá em casa, seguido de um olhar que me silenciava, pois as perguntas já me saltavam da garganta: onde? Nós éramos cinco e os almoços eram aguados, não passávamos fome mas tudo era racionado.
Como foi dada a ordem para não se falar mais nisso, o Manel mudou-se lá para casa de armas e bagagens, tendo ficado no quarto da minha irmã que se juntou a mim e à N. A ideia era irmos ambos às aulas enquanto tudo não estivesse resolvido, altura em que ele iria para os Açores mas com a matéria debaixo do braço. A mim bastava-me continuar.
Nos primeiros dias fomos juntos mas ele começou a preguiçar e eu comecei a ir sozinha e a responder - e a explicar - porque dava pelo nome de Manuel Maria Barbosa Peixoto.
Eram risos só superados por um colega que se chamava Jesus Roque e a quem os amigos teimavam em interromper as aulas, metendo a cabeça pela porta e perguntando aos professores se podiam falar com o menino Jesus...
O Manel dos Açores vivia melhor que nós e não tardou a fartar-se dos almoços que a minha mãe deixava. Um dia levantou-se e torcendo o nariz ao espreitar a panela perguntou-me se não queria ir comer arroz de marisco. Eu nunca comera arroz de marisco na minha vida e noutra altura teria aceite a correr, mas disse imediatamente que não, que o meu almoço estava ali. Porém, fui convencida a fazer-lhe companhia e, já almoçada, fui com ele a um restaurante onde o vi comer um pouco de tudo o que havia na secção de mariscos, com vinho branco que também não provei. A vontade era enorme e fez-me implicar com ele as duas horas que ali estivemos. Naquele momento odiava-o e odiava-me a mim: por ter comido o guisado aguado, por não dar o braço a torcer, por o achar um ingrato. Ainda por cima ele era daquelas pessoas que mastigam cem vezes cada garfada e eu sorvia a comida, o que só serviu para embirrar ainda mais com ele, lento, pastelão, molenga.
Eu escondia dos meus pais estas atitudes dele, pensando que iam ficar magoados, e eles pagavam ao Manel em passeios a qualquer lugar onde ele quisesse ir, apesar dos fracos cobres com que vivíamos. Valia o facto de o meu pai ter poucas folgas, sempre a trabalhar em dois empregos, a nossa salvação, eu era menor não tinha carta de condução, logo só saíamos mesmo em dia de festa. Um destes dias o Manel disse que nunca fora ao Cristo-Rei. Ai não? Logo ali se organizou a excursão, os meus pais, nós as três e o namorado da N., ao todo sete pessoas no Ford Kadett encarnado comido pelo sol. Chegados aos pés do Cristo, ele subiu, com a N. e o namorado, que lhe pagou o bilhete. Nós manifestámos o nosso velho conhecimento do monumento e deixámo-nos ficar encostados ao carro.
Vistas as vistas, desceram e, passando Almada, o Manel viu uma placa a dizer Costa da Caparica, ficou eufórico com a proximidade e disse ter lá um grande amigo. O meu pai rumou então à Costa e, à entrada, já nas Terras da Costa, perguntou onde morava esse grande amigo. A resposta provocou um silêncio seguido de uma gargalhada geral:
- A morada não sei, mas ele tem uma mota encarnada, não deve ser difícil de encontrar.
O meu pai abrandou, parou o carro, virou-se para trás para o amontado de nós e perguntou-lhe se ele tinha ideia de quantas motas encarnadas existiam na Costa, se ele tinha noção do tamanho da vila, se alguma vez lá fora. Três nãos.
Virou-se para a frente e foi conduzindo devagar, Oh Manel, isto nem parece seu. Mostrámos-lhe o mar e regressámos a casa, cheios de rugas na roupa, a N. bem apertadinha junto do seu A., a minha irmã no banco da frente ao colo da minha mãe e eu de trombas ao lado do palerma do Manel.
A estadia do Manel na nossa casa durou quase três meses, com esporádicas idas à Universidade e muitas discussões pois ele estava sempre pronto para sair e eu também, mas não tinha dinheiro para o acompanhar e não aceitava nada dele.
A N. um dia convenceu-o que sabia cortar cabelo e ele deixou que ela o pusesse com um ar muito avant garde, ou pelo menos foi isso que lhe dissemos, jurando que a moda em Lisboa era exactamente aquela.
Tirando a questão do dinheiro que para os meus lados era leve que nem uma pluma, até nos entendíamos e, talvez por isso, depois do adeus e do regresso aos Açores, poucas semanas depois ele voltou a Lisboa, foi visitar-nos e perguntou-me se queria casar com ele. Disse que não tencionava ficar em S. Miguel, que o Canadá o esperava, terra de grandes oportunidades, onde tinha amigos ou família, já não me lembro.
Um ano antes, durante o 12º ano, assistira ao casamento de uma colega de turma que para mim funcionara como uma coisa quântica, tão abstracta que eu não conseguia entender. O Canadá, as oportunidades, o ir embora, era tudo fantástico mas, tal como numa equação, havia um elemento que eu desconhecia, que me causava profunda estranheza, que não encaixava: casamento.
Ele insurgiu-se, afirmou não estar a brincar e eu ouvia um homem falar pensando que alguém o trocara no caminho porque quem se tinha ido embora era um rapaz na medida em que eu era uma rapariga, e essa coisa de casar era para velhos, não para rapazes e raparigas, a não ser que fossem loucos ou, como no caso da Adelaide, que a sogra fosse psicótica e insistisse no casamento imediato alegando ter visões que lhe diziam que o filho morreria em breve e se não casasse já, ela nunca teria netos.
Canadá, sim. Oportunidades, sim, também. Casar, não.
O Manel dos Açores foi embora, solteiro, e nunca mais o vi, nem nada soube dele. Comecei a namorar com outro Manel, continental, com quem casei e tive um filho. A N. casou com o meu queridíssimo A., e assim se mantém, com dois filhos maravilhosos, cuja amizade prezo imenso.
Há dois ou três anos um antigo colega do liceu conseguiu localizar a turma inteira e organizou-se um jantar no qual adorei ter participado: uns gordos, outros magros, outros parvos iguais ao que eram, uma camaradagem que não adivinhei manter-se depois de tantos anos. Pusemos a escrita em dia com as novas moradas, com os filhos, com os estados civis de casados e divorciados, com uma excepção: a Adelaide era viúva pois o marido morrera tal e qual como a sogra sempre previra.
Dizem que as sogras nunca se enganam!:-)
ResponderEliminarAs suas memórias foram aqui, muito bem contadas, parabéns!
Obrigada :) Há coisas mesmo inexplicáveis...
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