quarta-feira, 19 de junho de 2013

Homem com cão pela trela

Se eu fosse pintora já tinha criado em volta deste assunto. Tela de dois metros por um, para passar a ideia de altura do cavalheiro que, com garbo, segura, atenção segura, não puxa!, a trela do seu bobi.
Para aprofundar bem a realidade, a seu lado estaria uma estrábica embevecida. E porquê uma estrábica? Porque com um olho mirava o cão, que teria talvez, talvez, ainda não sei bem, direito a ser afagado com as duas mãos, e com o outro olho catrapiscava o dono do cão, objectivo primeiro, mas dissimulado, da dama.
Se eu fosse cineasta já teria igualmente feito um filme sobre o tema. Planos inclinados de baixo para cima, para aumentar a altura do protagonista, substituía a estrábica por uma amblíope dando-lhe instruções para revirar os olhos, do cão para o dono e do dono para o cão, com afagos na zona do pescoço onde, por coincidência, tocaria na coleira e na trela, cuja qualidade não lhe passaria despercebida mas, para a confirmar, pegar-lhe-ia até à pega e daí até à mão do dono - grande e forte sem ser calejada -  era um ai.
Se um homem com uma criança é um desatino e uma tentação para as mulheres - ai que querido, que fofo, que cuidadoso, ai que tanta coisa - com um cão ainda é melhor. Os cães não falam, não fazem perguntas, nem esperamos respostas e podem sempre ser postos de lado quando apeteça, prendendo a alça da trela à pata da mesa da esplanada, enquanto a conversa começa com histórias de cães que já se tiveram, mas que fazem parte de vidas passadas, e acaba de mil maneiras possíveis. Os cães não fazem birras como os petizes, não pedem insistentemente para fazer xixi e se o pedem fazem-no num sítio qualquer onde a nova apaixonada pelo cão não tem de se afastar do dono. Não há horas para comer, os cães não dormem sestas, não reclamam, não querem os brinquedos que estão nas montras. É só vantagens.
A não ser que se tenha medo deles...
No café por baixo da minha casa param várias pessoas com cão. Há um husky que fica à porta sem trela e não se mexe um milímetro. Há um yorkshire cujo pelo oleoso me dá vómitos e que fica ao colo da dona enquanto o dono bebe café e passa para este para que ela possa engolir a bica. Há um outro cuja raça desconheço mas imagino-o assado no forno e até me babo e há um pug.
Eu gosto de cães, já tive vários - dos quais destaco o Luca e o Pepe - mas tenho uma predilecção por cães que se vejam, grandes e só o husky tem o meu cumprimento matinal, que me desculpem os outros, mas quem diz a verdade não merece castigo.
Mesmo que o pug não fosse ainda criança, todo negro e muito brincalhão, não fazia mal, porque tem um dono todo jeitoso, característica dos cães que pode levar as pessoas a gostarem deles mesmo que detestem cães. Funciona como um nome bem para certas pessoas: é feio que nem uma bota da tropa mas é um Telles com dois lês; é gordo que nem um texugo mas é um Bettencourt com dois tês; é burro que nem uma porta mas é um Castelo-Branco com tracinho.
O dono do pug deve dormir mal de noite porque tem sempre os olhos semicerrados e deve fumar qualquer coisa pois quando poisa o olhar, fixa-o. Esta fixação tem o efeito de fazer rir certas mulheres que vão despejar o riso no pug que está atrelado a um arbusto ao lado da porta do café. O cãozinho, se fosse de peluche e estivesse na mão de uma criança, não era mais amassado, garanto.
As adoradoras do cão falam com ele através da língua ancestral que também se usa para falar com bebés, incompreensível para mim. De entre estas destaca-se uma que força o sorriso e toca no cão como se ele fosse uma bomba prestes a explodir, afirma ter medo mas diz querer combatê-lo e hoje pediu ao dono do bicho que lhe ensinasse a fazer-lhe festinhas, sic. O dono do bicho, que continua a dormir mal e estava fixado precisamente nesta cliente, eriçou-se com o pedido, veio cá para fora explicar como não havia que ter medo de uma coisa tão doce, segurou a mão da medrosa na sua e o cão estava encantado com tanto mimo. Ela dava uns saltinhos e afastava a mão do pêlo lustroso, e ele puxava-a levemente, insistindo nas carícias. Às tantas conseguiu pôr-lhe o cão ao colo, ela de pescoço esticado para trás e olhos arregalados de medo, mostrando doses de coragem que muitos soldados não têm.
Ao balcão do café imperava o silêncio. O silêncio e os risos surdos. Pelas janelas largas acompanhávamos a cena, espectadores de um filme em cartaz há décadas e décadas: A arte da conquista.

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