quinta-feira, 20 de junho de 2013

De carro

O primeiro carro do meu pai foi um Fiat 850. Lembro-me de lá entrar pela primeira vez, em terceira mão mas novo, tão novo que nos fazia luzir por dentro. Lembro-me da minha mãe, pavoa, a chegar à aldeia e a levar os pais a passear, o meu pai a prometer, e sempre a cumprir, que a partir de agora iríamos mais vezes, as máquinas a facilitarem o contacto entre as pessoas, a aproximá-las.
O meu pai, caso raro de amor extremo pela sogra e pelo sogro, amor esse recíproco, chegava a rumar à aldeia sozinho para ajudar na azeitona, mais um fim-de-semana para a apanha do melão, depois outro para desburricar as oliveiras e outro e outro e outro. Sogro e genro a darem-se como pai e filho, não porque a um faltasse pai nem a outro descendência masculina, mas porque as boas relações são boas e não é preciso mais explicações.
Se há coisas que me parecem impossíveis, mas sei serem verdadeiras porque as vivi, são as viagens ao Alentejo no Fiat 850 onde, numa ocasião, chegámos a ser nove pessoas.
Bancos duros que nem pedra, duas portas, crianças sentadas ao colo do passageiro da frente, gente amontoada no banco de trás, velocidade máxima perto da actual mínima, um dia inteiro para chegar a qualquer lado, estradas pobres e esburacadas, havia de tudo.
Mais tarde, por vários carros que fomos tendo, o meu pai teve uma carrinha só com três lugares à frente e caixa vazia que, a caminho de uma feira de Moura levou do Sobral da Adiça trinta e três pessoas, sem um único banco. À saída da aldeia os meus pais pararam para beber café e disseram que íamos à Feira; juntou-se um que também queria ir e mais outro, e outros que chamaram outros e eram precisamente trinta e três outros, contados à chegada a Moura à medida que iam saindo da viatura.
Hoje isto seria impossível e daria prisão perpétua algures na Tailândia, mas na altura era normal, assim como foi normal sentarmo-nos nas escadas da praça de touros a cantar, dando continuidade à cantoria que já tinha vindo arrepiando as folhas das videiras da vinha dos Machados e transformando os torrões em terra quase líquida com o afinado das vozes.
Actualmente escolhemos a estação de rádio, com um toque ou vários toques sucessivos e não rodando um botão, optamos por um CD, ligamos o telemóvel ou uma pen às colunas da aparelhagem do carro. Actualmente há sempre rede, conceito que na altura, no máximo, nos faria lembrar o Emiliano cujo pai era pescador.
A falta de cobertura do rádio e a existência de cassetes, mas esventradas com as figadais fitas todas enroladas, levava-nos a cantar: Quando Cheguei ao Barreiro à saída de Lisboa; Grândola Vila Morena, à beira de Grândola e muito antes de Vila Morena estar escrito na placa; Ó Beja Pois Tu Não Sabes, à vista de Beja; Ai Ai Ai Trigueirinha onde nos apetecesse; Lá Vai Serpa, Lá Vai Moura, à passagem por Serpa; Sobral da Adiça à entrada da aldeia e muitas outras.
A minha irmã e eu ainda gostamos imenso de cantar quando andamos de carro e fazemo-lo sempre que podemos, canções antigas, novas, infantis, tudo o que nos vem à memória. Sabemos que cantamos muito bem e para mim sempre foi um mistério porque nunca fizemos carreira musical, principalmente depois do dia em que fomos a um bar de karaoke e quando terminámos veio o dono e disse-nos que a conta estava paga com a condição de não voltarmos a abrir a boca… caso contrário ele convidar-nos-ia a sair do distinto estabelecimento. Era só uma opinião, o homem sabia aviar copos mas não tinha ouvido para a música, como é óbvio!
Este Verão esperam-nos os Picos da Europa. Cumpriremos os limites de velocidade, poremos os cintos de segurança e, apesar de sermos só quatro, até o Pelágio ressuscitará quando por lá passarmos a cantar. 

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