terça-feira, 27 de setembro de 2011

Fazer nada

Gosto de me levantar cedo para poder fazer nada. Esse aparente nada transforma-se sempre num cumprimento ao dia por onde vejo os outros passar a correr sem o verem, como se fosse um filme diante dos meus olhos.
Tantos destinos, tantos compromissos, tantas pressas e eu de conversa com o dia, paciente com ele, a deixá-lo espreguiçar e vendo uma cidade inteira a pendurar-se-lhe nos braços.
Enquanto espero que o dia se torne adulto, e todos os outros ocupem o seu lugar nele sem sequer o verem, identifico barulhos e ruídos, vejo as sombras mudarem de posição, as luzes das ruas apagarem-se, as tarefas rotineiras abrirem-se como torneiras.
O céu veste-se de azul natural, dando-me o privilégio de não ver outras roupagens, cinzentas, que me fariam perder alguma boa disposição.
Depois deste exercício de observação estou pronta para começar a trabalhar, sem sono, consciente que cumpri um ritual religioso ou pagão, que me encaixei no dia e não o deixei passar por mim anónimo, sem história.
Ao fim do dia passo pelas Portas do Sol, enfio pela Arenales. A entrada no céu não deve ser muito diferente: entardecer quente, jazz tocado no meio da rua e uma banca de livros usados, como piscina de água cristalina e fresca. Passo os dedos pelos livros, leio os títulos e o papel velho sorri-me, como fazem os velhos amigos.
O próprio tempo senta-se neste fim de tarde, parado, e se cães houvesse não ladrariam, sossegados pela ternura da luz que se esvai.

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