Algures no século
passado andava eu em preparativos para o meu casamento quando chegou a altura
da escolha do local do copo-d’água. De entre alguns restaurantes fixei um que
nos recebeu com um disco humano: depois das palavras iniciais de cumprimentos e
tal o dono do restaurante passou a descrever como se passavam ali os copos-d’água.
- Os convidados
chegam, estacionam, saem dos carros, sobem as escadas, estão a ver?
Na verdade não estávamos
e o meu pai perguntou se havia outro local de estacionamento, uma vez que na
frente do restaurante alinhavam-se, quando muito, cinco ou seis carros.
- Sim temos, lá atrás
há um espaço enorme. Ora recapitulemos: os convidados chegam, estacionam, saem
dos carros, sobem as escadas, alinham-se lá em cima ao pé das mesas. Estão a
acompanhar-me?
Adivinhando uma hora
bem divertida o meu futuro marido respondeu que sim e eu perguntei se podíamos
falar na sala lá de cima, onde eventualmente decorreria a festa.
- Sim, claro, subam,
subam.
Enquanto subia não
consegui reprimir uma gargalhada quando o homem disse:
- Ora recapitulemos: os
convidados chegam, estacionam, saem do carros, sob…
- E quem não vem de
carro?
Fui fulminada com
olhares sorridentes que se continham para não rir abertamente e o senhor
respondeu com ar sério:
- Minha senhora, isso
já não é problema nosso, será do seu convidado que tem que arranjar boleia com
alguém. Como calcula, sem ser de carro, é difícil chegar aqui. Em última análise
têm de ser os senhores a tratar do assunto. Ora, onde é que eu ia? Recapitulemos:
os convidados chegam, estacionam, saem dos carros, blá, blá blá…
Quando saímos de lá
desatámos numa gargalhada pegada e entrámos no carro a repetir a sequência que
o homem nos fizera decorar, como se fosse uma ladainha. Escolhemos outro local.
Ontem à noite na reunião
de condomínio revivi aquele momento fazendo dois grandes esforços: não me rir e
suster os bocejos.
O administrador do prédio,
o sr. L.A. – que já deve ter ouvido falar em Los Angeles mas garantidamente
pensa que é um filme do James Cameron – é homem para quarentas e tais, sensivelmente
a minha idade, tem metade da minha estatura, está reformado não sei porquê,
fala pelos cotovelos sendo a pessoa com maior capacidade de dispersão que
conheço e eu conheço muita gente.
A única coisa que me
mantinha acordada era a expectativa de falar com o V. que me ligou no início da
reunião e a quem eu desliguei o telefone enviando-lhe uma mensagem a explicar
onde estava e que falaríamos mais tarde.
O prédio tem 11
inquilinos, eu fui a quinta a chegar à arrecadação onde se fazem estes
encontros maçónicos. Depois de mim apareceram mais três pessoas. Ele já lá
estava, claro, sentado diante de uma mesa que me fez lembrar a mesa dos Nenucos
da minha sobrinha e onde se alinhavam milimetricamente dois papéis soltos, um
bloco, duas canetas, uma máquina de calcular e uma pasta castanha que deve ter
pertencido a um espião dos anos 50, daquelas que alguém leva presa com uma
algema, que se mantinha em equilíbrio meia fora meia dentro face ao reduzido
tampo da mesa e ali ficou aberta, virada para ele, como se estivéssemos a jogar
batalha naval, ele contra todos nós.
Quando entrei o Sr.
L.A. explicou que tinha consigo dois orçamentos para a pintura e isolamento do
prédio e passou a ler, depois de ter posto uns mini óculos na ponta do nariz
afilado.
- Como vê vizinha,
menos que isto não é possível e isto é muito urgente pois… Boa noite D. Beatriz.
Boas noites disparadas
para todos os lados e o Sr. L.A., como se fosse uma cassete, faz rewind e
repete o que me tinha dito que, por sua vez, já era uma repetição do que tinha
dito aos que já lá estavam.
Se era crucial que
todos fossemos à reunião, interiormente rezei para que não aparecesse mais
ninguém, caso contrário já sabíamos que ele iria fazer aquilo que mais adora e
com toda a legitimidade: ouvir-se a expor dar a sua opinião sabendo que a
maioria seguiria as palavras do líder, como se fossemos um grupo da Resistência
e planeássemos um ataque cujo objectivo era salvar a Europa.
Mas isso não aconteceu
e vieram mais duas pessoas: ele repetiu o acto de pôr os mini óculos, de pegar
nos dois papéis, de ler sobre a pintura impermeabilizadora, de descrever o
procedimento das camadas de tinta especial que acabará com a humidade, de
explicar como se limparão os estendais, que ficarão como novos,etc., etc.
Acredito que tenha praticado
ao espelho antes de ir para ali pois até os gestos aparentemente casuais se
repetiam, um simples estender o braço como quem ajuda a perceber, o levantar da
sobrancelha, o tira e põe os óculos de forma dramática.
Mais ainda, tendo os
orçamentos a menção ao IVA mas não estando as contas feitas, a cada nova
entrada de um vizinho, ele explicava e, usando a ponta da caneta, carregava nas
minúsculas teclas da calculadora e chegava à quantia – sempre a mesma, calcule-se! – de 462
euros.
Quando chegou a D.
Beatriz, logo a seguir a mim, e ele foi carregando nas teclas com a ponta da
caneta, eu disse: são 462 euros. Ele terminou a conta na máquina, virou-se para
mim e disse sorrindo para os outros:
- Aqui a nossa vizinha
tem cabeça para os números! Está certíssimo!
Não aguentei. Não aguentei
mesmo. Desatei numa risada, à qual todos se juntaram e até levei uma palmadinha
no ombro, do jovem que vive no rés-do-chão, e uma piscadela de olho de outra
vizinha. Ele sorriu também, um pouco contrafeito, não aborrecido, mas como se
uma piada voadora tivesse ali passado e ele não a apanhasse.
Por entre muito bufar
a cena repetiu-se a cada nova entrada como se estivéssemos num concurso para
adivinhar as diferenças.
Depois de muita revisão
da matéria, e de repetidos e sucessivos concordares com o orçamento, lá se deu
por terminada a sessão de espiritismo e eu pude ir tagarelar com o V.
Sem comentários:
Enviar um comentário