terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Recapitulemos


Algures no século passado andava eu em preparativos para o meu casamento quando chegou a altura da escolha do local do copo-d’água. De entre alguns restaurantes fixei um que nos recebeu com um disco humano: depois das palavras iniciais de cumprimentos e tal o dono do restaurante passou a descrever como se passavam ali os copos-d’água.
- Os convidados chegam, estacionam, saem dos carros, sobem as escadas, estão a ver?
Na verdade não estávamos e o meu pai perguntou se havia outro local de estacionamento, uma vez que na frente do restaurante alinhavam-se, quando muito, cinco ou seis carros.
- Sim temos, lá atrás há um espaço enorme. Ora recapitulemos: os convidados chegam, estacionam, saem dos carros, sobem as escadas, alinham-se lá em cima ao pé das mesas. Estão a acompanhar-me?
Adivinhando uma hora bem divertida o meu futuro marido respondeu que sim e eu perguntei se podíamos falar na sala lá de cima, onde eventualmente decorreria a festa.
- Sim, claro, subam, subam.
Enquanto subia não consegui reprimir uma gargalhada quando o homem disse:
- Ora recapitulemos: os convidados chegam, estacionam, saem do carros, sob…
- E quem não vem de carro?
Fui fulminada com olhares sorridentes que se continham para não rir abertamente e o senhor respondeu com ar sério:
- Minha senhora, isso já não é problema nosso, será do seu convidado que tem que arranjar boleia com alguém. Como calcula, sem ser de carro, é difícil chegar aqui. Em última análise têm de ser os senhores a tratar do assunto. Ora, onde é que eu ia? Recapitulemos: os convidados chegam, estacionam, saem dos carros, blá, blá blá…
Quando saímos de lá desatámos numa gargalhada pegada e entrámos no carro a repetir a sequência que o homem nos fizera decorar, como se fosse uma ladainha. Escolhemos outro local.
Ontem à noite na reunião de condomínio revivi aquele momento fazendo dois grandes esforços: não me rir e suster os bocejos.
O administrador do prédio, o sr. L.A. – que já deve ter ouvido falar em Los Angeles mas garantidamente pensa que é um filme do James Cameron – é homem para quarentas e tais, sensivelmente a minha idade, tem metade da minha estatura, está reformado não sei porquê, fala pelos cotovelos sendo a pessoa com maior capacidade de dispersão que conheço e eu conheço muita gente.
A única coisa que me mantinha acordada era a expectativa de falar com o V. que me ligou no início da reunião e a quem eu desliguei o telefone enviando-lhe uma mensagem a explicar onde estava e que falaríamos mais tarde.
O prédio tem 11 inquilinos, eu fui a quinta a chegar à arrecadação onde se fazem estes encontros maçónicos. Depois de mim apareceram mais três pessoas. Ele já lá estava, claro, sentado diante de uma mesa que me fez lembrar a mesa dos Nenucos da minha sobrinha e onde se alinhavam milimetricamente dois papéis soltos, um bloco, duas canetas, uma máquina de calcular e uma pasta castanha que deve ter pertencido a um espião dos anos 50, daquelas que alguém leva presa com uma algema, que se mantinha em equilíbrio meia fora meia dentro face ao reduzido tampo da mesa e ali ficou aberta, virada para ele, como se estivéssemos a jogar batalha naval, ele contra todos nós.
Quando entrei o Sr. L.A. explicou que tinha consigo dois orçamentos para a pintura e isolamento do prédio e passou a ler, depois de ter posto uns mini óculos na ponta do nariz afilado.
- Como vê vizinha, menos que isto não é possível e isto é muito urgente pois… Boa noite D. Beatriz.
Boas noites disparadas para todos os lados e o Sr. L.A., como se fosse uma cassete, faz rewind e repete o que me tinha dito que, por sua vez, já era uma repetição do que tinha dito aos que já lá estavam.
Se era crucial que todos fossemos à reunião, interiormente rezei para que não aparecesse mais ninguém, caso contrário já sabíamos que ele iria fazer aquilo que mais adora e com toda a legitimidade: ouvir-se a expor  dar a sua opinião sabendo que a maioria seguiria as palavras do líder, como se fossemos um grupo da Resistência e planeássemos um ataque cujo objectivo era salvar a Europa.
Mas isso não aconteceu e vieram mais duas pessoas: ele repetiu o acto de pôr os mini óculos, de pegar nos dois papéis, de ler sobre a pintura impermeabilizadora, de descrever o procedimento das camadas de tinta especial que acabará com a humidade, de explicar como se limparão os estendais, que ficarão como novos,etc., etc.
Acredito que tenha praticado ao espelho antes de ir para ali pois até os gestos aparentemente casuais se repetiam, um simples estender o braço como quem ajuda a perceber, o levantar da sobrancelha, o tira e põe os óculos de forma dramática.
Mais ainda, tendo os orçamentos a menção ao IVA mas não estando as contas feitas, a cada nova entrada de um vizinho, ele explicava e, usando a ponta da caneta, carregava nas minúsculas teclas da calculadora e chegava à quantia – sempre a mesma, calcule-se! – de 462 euros.
Quando chegou a D. Beatriz, logo a seguir a mim, e ele foi carregando nas teclas com a ponta da caneta, eu disse: são 462 euros. Ele terminou a conta na máquina, virou-se para mim e disse sorrindo para os outros:
- Aqui a nossa vizinha tem cabeça para os números! Está certíssimo!
Não aguentei. Não aguentei mesmo. Desatei numa risada, à qual todos se juntaram e até levei uma palmadinha no ombro, do jovem que vive no rés-do-chão, e uma piscadela de olho de outra vizinha. Ele sorriu também, um pouco contrafeito, não aborrecido, mas como se uma piada voadora tivesse ali passado e ele não a apanhasse.
Por entre muito bufar a cena repetiu-se a cada nova entrada como se estivéssemos num concurso para adivinhar as diferenças.
Depois de muita revisão da matéria, e de repetidos e sucessivos concordares com o orçamento, lá se deu por terminada a sessão de espiritismo e eu pude ir tagarelar com o V.

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