segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

A minha tesoura não se chama Dalila


Namorava eu com o pai do Duarte quando ele foi para a tropa. Primeiro em Tavira e depois em Oeiras, a farda verde assentava-lhe que nem uma luva. Também podiam ser os meus olhos que estavam vesgos, não sei.
Dois ou três dias antes de se ir embora, apanhando o barco para o Barreiro e daí de comboio até ao Algarve, na companhia de dois amigos de longa data, assim ditou a sorte, disse-me que eu o ia ver como nunca o tinha visto e que ia ter uma surpresa.
Para quem não era rigorosamente nada dado a surpresas só podia ser qualquer coisa a que fosse obrigado e se ia para a tropa e eu o ia ver como nunca tinha visto, só podia ser uma rapadela de cabelo.
Estava um dia de sol quente quando ele tocou à campainha e eu confirmei pelo olho-de-boi que a máquina lhe tinha passado pela cabeça. Ao contrário dele, eu adorava – adoro – surpresas. Por isso, quando abri a porta o sorriso dele desfez-se: se a carecada dele era grande a minha era maior.
Tenho algumas fotografias minhas com ar de G. I. Jane, nunca mais voltei a cortá-lo daquela forma, mas já dei cortes valentes e sábado passado foi outra vez dia de corte radical.
As madeixas louras deixaram minúsculos filhotes perdidos nas ondas que permaneceram e vou entregar a colecção de ganchos, elásticos e badoletes à minha única herdeira destes materiais, a minha sobrinha.
A intratável cabeleira desapareceu na manhã seguinte a um - outro - enorme susto: há quem dê voltinhas de carrocel e há quem conheça e acompanhe as voltas dos avc’s.
O meu pai é veterano de avc’s e a proximidade da data fatal do exame que o vai levar à amputação descontrola-o completamente.
O que tem um corte de cabelo a ver com um avc ou uma amputação? Não, não é anedota, é a pura da realidade. Deixando que o espelho me olhe de forma diferente acredito que consigo aceitar qualquer mudança. Perco uma coisa pela qual me elogiam, especialmente nos dias de grande selvejaria que não domino, uma ponta para cada lado, ondas a mudarem de lugar como se tivessem vontade própria, e ganho tantas outras coisas. Desde logo uma poupança em shampoo e creme amaciador. O secador vai ter um uso residual. A minha sobrinha vai adorar a caixa cheia de apetrechos. Nunca vou ter madeixas na cara mesmo em dias de vento e um sem fim de outras coisas positivas.
Cá dentro não há mudanças. Ou talvez haja: corta-se de um lado para se fortalecer de outro, ao contrário de Sansão a minha força não reside no cabelo mas nas raízes que me garantem que a vida continuará o seu percurso.

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