terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Balde de água fria


Depois da tempestade vem a bonança. Costuma ser assim. Mas também pode ser ao contrário.
Saímos do hospital em procissão, quais peregrinos agradecidos, a graça foi-nos concedida: o meu pai não será operado tão cedo. Chovem telefonemas que são atendidos com o mesmo sorriso de satisfação e a informação repete-se.
Passa uma semana e já nos habituámos a não reter a respirar com medo das notícias, pelo menos por ora navegamos sem perigo à vista.
A menos que telefonem a dizer que houve um engano, que uma análise mais centrada dos exames dite exactamente o contrário, que a coisa é muito mais grave do que parecia e afinal não há alternativa, é operar, com escassos pontos percentuais de probabilidades de não cortar.
Atendo o telefone a caminho de uma curta reunião. Deixo de sentir os braços e fico com tonturas. Um engano?
Sinto-me uma criança a quem tiraram o brinquedo preferido e penso imediatamente no euro-milhões; não, não precisa de ser aquela batelada de milhões, o necessário para uma cadeira de rodas chega.
Não, não chega, quero-o todo!
Quero comprar a mais sofisticada cadeira de rodas que já existiu, quero comprar uma prótese digna de um atleta olímpico, e um carro adaptado, o melhor que alguma marca de carros já construiu; quero comprar uma casa rasteira com jardim e com quintal, sem escadas; quero bilhetes em primeira classe no avião mais rápido do mundo para os levar a Roma, onde rezem o que lhes for na alma, e dali a Paris para que conheçam a cidade que lhes suscita curiosidade e onde nunca foram, num passeio que dure o tempo que lhes apetecer; quero comprar outra casa, lacustre de preferência, para que estejam na praia sempre que lhes apetecer e a minha mãe a decore como bem entender; quero comprar todos os bilhetes de teatro e cinema e dança e exposições e tudo em todo o mundo para que se deliciem com o que gostam; quero comprar todos os dicionários que existem no mundo e apagar a palavra Engano; quero que a operação corra bem.

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