segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

O Retorno


Nos idos de 68 os meus pais vieram para Lisboa. Diziam eles, embora tivessem vindo para o Cacém, mas para os que ficaram, Lisboa ou Cacém, era a mesma coisa, calhando o Cacém era uma rua de Lisboa, uma parte da cidade, como a Coitada era uma parte da aldeia, nascida Coutada, mas mudada para Coitada na voz de todos e cada um, o que é uma palavra sem um i naquele Alentejo? Não era preciso dizer que era a Coitada do Sobral da Adiça, todos sabiam, mesmo que Safara também tivesse uma Coitada e Vale de Vargo outra e Ficalho outra e por esses caminhos muitas Coitadas houvessem.
Viemos para uma casa que era de uns tios que viviam em África, fosse África o que fosse, se calhar era uma rua ou um bairro lá de um outro Cacém. Mas ficava longe, muito longe, razão pela qual iam de barco e demoravam muitos dias. Era tão longe que um dos meus tios até foi de avião, juro, lembro-me de ouvir contar, os meus pais não iam mentir. Sim senhor, de avião.
O meu pai ainda meteu os papéis para ir para África mas não o chamaram. Se calhar era por causa de usar óculos que foi por causa de usar óculos que não o quiseram na Aviação, quando ele foi para a tropa e acabou por ser soldado normal, feito rádio-telegrafista lá pelos outros soldados e generais. Tinha uma máquina que ouvia tudo o que se dizia, tudo, mas não era ouvir com os ouvidos, era ouvir com códigos de pi pi pi, mas eram pi pi pis que ele percebia, por isso o tinham levado para ali, mesmo com óculos.
É claro que eu preferia ter ido para África do que ter ficado, apesar do meu pai ser rádio-telegrafista, palavra que gostava de ouvir, o éle a misturar-se com os érres, ainda hoje gosto.
Sentia até uma certa raiva por não termos ido e essa raiva transformava-se em inveja quando os meus primos vinham a Portugal. Inveja do que eu sonhava que eles lá tinham, ou melhor, do que eles lá eram. Tinham criados pretos, nós não tínhamos criados de cor alguma, eu comia pastilhas e eles mastigavam chuinga, o que para mim era muito para eles era maning, o Natal era aqui passado enrolados em camisolas de malha e eles na praia.
Praia e Natal, quem disse que o paraíso só se via nas imagens dos livros da catequese é porque, obviamente!, não conhecia Angola ou Moçambique como os meus primos conheciam. Mais, eles até tinham fotografias, a barriga enorme do meu tio cheia de areia, palmeiras lá atrás, uma preta a segurar ao colo o meu primo mais novo e o mais velho dentro de água, vê-se tudo na fotografia, a minha tia sentada na areia a sorrir, com um sorriso que só podia ser de Natal.
Penso que de tudo o que contavam era este aspecto que mais pesava na minha inveja. Aqui os meus primos eram uns vândalos que faziam perder a cabeça ao meu avô com tanta avaria e se ele já tinha tido que aceitar a cabeça da pacaça pendurada na sala, tipicamente alentejana, por cima do sofá, não tolerava certas brincadeiras, ai isso não.
Havia ainda outra coisa que eu não percebia – havia muitas, mas esta era recorrente: falavam em vir à metrópole, aqui na metrópole, a última vez que vieram à metrópole. Eles deviam estar enganados porque só os via no Cacém e no Sobral da Adiça e sempre que vinham nós estávamos com eles e nunca dei conta de irem à tal metrópole. Devia ser problema de linguagem, com certeza.
De repente apareceram por cá e ficaram para sempre. Havia lá uma guerra ou coisa parecida.
Nós mudámos de casa e eles estabeleceram-se na sua própria casa, cada qual em sua, pois ao todo eram dois tios, duas tias e quatro primos. Um dos casais teve um contentor cheio de coisas durante algum tempo ao pé do Tejo. Eu estava morta de curiosidade pelo contentor. Primeiro, o que seria um contentor? Segundo, pelo tamanho que diziam ter com certeza até leões lá estariam, não era em África que viviam? A minha tia não era apontada como tendo uma pontaria de invejar? Nem Deus sabia o que podia estar no tal de contentor.
O outro tio era enfermeiro razão pela qual foi o último a chegar, no último navio que veio de lá e vieram muitos e muitos aviões, parece que ao todo eram meio milhão de pessoas e se ele foi o último, foi o número quinhentos mil, que coincidência, ninguém é um número tão certo, os nossos bilhetes de identidade são uma mão cheia de números ao calhas, a licença de caça do tio Eduardo a mesma coisa, a carta de condução do meu pai a mesma coisa, o número da licença da mota do avô a mesma coisa e é a mesma coisa com toda a gente, à excepção do Tio G. que foi o número quinhentos mil, maning de giro.
Trouxeram a voz arrastada, com uma espécie de sotaque que era diferente do sotaque do Florival, o filho da vizinha da minha avó que estava na Suisse que, num processo contrário ao da Coitada, mais tarde se transformou em Suiça.
Traziam hábitos diferentes, roupas diferentes e queixavam-se muito do frio mesmo em dias onde não fazia frio. Mas lá não havia frio? Que coisa mais esquisita para as pessoas não saberem o que é!
Para além das palavras que eles trouxeram houve uma outra que ficou na boca de toda a gente, repetida até à exaustão: Retornados.
Não havia frase, conversa, telefonema, que eram raros, cartas ou jornais que não os mencionassem. Os vizinhos apontavam-nos com dedos e olhares sussurrantes, os ladrões de empregos que andaram lá a matar pretos e a fazer mulatinhos e agora estão aqui.
Quando o tio G. chegou nós sabíamos que ele vinha e fomos esperá-lo a Lisboa. Toda a minha atenção se centrou naquele barco e n o r m e onde ele tinha viajado. De tal forma que uns dias depois o meu pai convenceu-o a deixar-me acompanhá-los quando ele voltou ao navio para ir buscar uma coisa muito especial: a Milú, a pastor alemão arraçada de leão da Rodésia sobre a qual já aqui falei.
Eis que agora tudo me vem à ideia, que até nisto a leitura é boa, auxiliar de memória, não ao estilo do Hilário, mas como luz que se acende algures cá dentro da massa cinzenta.
O Retorno, de Dulce Maria Cardoso é emocionante e emocionado, vivo numa respiração que ainda resiste em cada re-olhar as fotografias, em cada lembrança, em cada partilha dos que viveram de alguma forma aqueles tempos.
A esperança e a desilusão, o passado quente, o presente gelado e o futuro mais incerto que nunca, completamente desconhecido, as personagens tão reais, a escrita tão fluída e verdadeira, que nas conversas e nos pensamentos não há parágrafos nem pontuação.
As boas intenções que enchem infernos estão ali todas, bem como as más, as assim-assim, as irreconhecíveis, tudo bem juntinho a perfazer um romance inesquecível, soberbo onde o desdém e a desconfiança convivem com a esperança de uns, as dúvidas de outros, misturando os caminhos de todos.
Conheci alguns Ruis de casacos brancos e mangas curtas demais e sempre achei que cada um deles valia um mundo que transbordava. Dulce Maria Cardoso provou-o neste livro magistral.
Livro sem gralhas, edição da Tinta-da-China, 2011.

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