Nos idos de 68 os meus
pais vieram para Lisboa. Diziam eles, embora tivessem vindo para o Cacém, mas
para os que ficaram, Lisboa ou Cacém, era a mesma coisa, calhando o Cacém era
uma rua de Lisboa, uma parte da cidade, como a Coitada era uma parte da aldeia,
nascida Coutada, mas mudada para Coitada na voz de todos e cada um, o que é uma
palavra sem um i naquele Alentejo? Não era preciso dizer que era a Coitada do
Sobral da Adiça, todos sabiam, mesmo que Safara também tivesse uma Coitada e
Vale de Vargo outra e Ficalho outra e por esses caminhos muitas Coitadas
houvessem.
Viemos para uma casa
que era de uns tios que viviam em África, fosse África o que fosse, se calhar
era uma rua ou um bairro lá de um outro Cacém. Mas ficava longe, muito longe,
razão pela qual iam de barco e demoravam muitos dias. Era tão longe que um dos
meus tios até foi de avião, juro, lembro-me de ouvir contar, os meus pais não iam
mentir. Sim senhor, de avião.
O meu pai ainda meteu
os papéis para ir para África mas não o chamaram. Se calhar era por causa de
usar óculos que foi por causa de usar óculos que não o quiseram na Aviação,
quando ele foi para a tropa e acabou por ser soldado normal, feito rádio-telegrafista
lá pelos outros soldados e generais. Tinha uma máquina que ouvia tudo o que se
dizia, tudo, mas não era ouvir com os ouvidos, era ouvir com códigos de pi pi
pi, mas eram pi pi pis que ele percebia, por isso o tinham levado para ali,
mesmo com óculos.
É claro que eu
preferia ter ido para África do que ter ficado, apesar do meu pai ser rádio-telegrafista,
palavra que gostava de ouvir, o éle a misturar-se com os érres, ainda hoje
gosto.
Sentia até uma certa
raiva por não termos ido e essa raiva transformava-se em inveja quando os meus
primos vinham a Portugal. Inveja do que eu sonhava que eles lá tinham, ou
melhor, do que eles lá eram. Tinham criados pretos, nós não tínhamos criados de
cor alguma, eu comia pastilhas e eles mastigavam chuinga, o que para mim era
muito para eles era maning, o Natal era aqui passado enrolados em camisolas de
malha e eles na praia.
Praia e Natal, quem
disse que o paraíso só se via nas imagens dos livros da catequese é porque,
obviamente!, não conhecia Angola ou Moçambique como os meus primos conheciam. Mais,
eles até tinham fotografias, a barriga enorme do meu tio cheia de areia,
palmeiras lá atrás, uma preta a segurar ao colo o meu primo mais novo e o mais
velho dentro de água, vê-se tudo na fotografia, a minha tia sentada na areia a
sorrir, com um sorriso que só podia ser de Natal.
Penso que de tudo o
que contavam era este aspecto que mais pesava na minha inveja. Aqui os meus
primos eram uns vândalos que faziam perder a cabeça ao meu avô com tanta avaria
e se ele já tinha tido que aceitar a cabeça da pacaça pendurada na sala, tipicamente
alentejana, por cima do sofá, não tolerava certas brincadeiras, ai isso não.
Havia ainda outra
coisa que eu não percebia – havia muitas, mas esta era recorrente: falavam em
vir à metrópole, aqui na metrópole, a última vez que vieram à metrópole. Eles deviam
estar enganados porque só os via no Cacém e no Sobral da Adiça e sempre que
vinham nós estávamos com eles e nunca dei conta de irem à tal metrópole. Devia ser
problema de linguagem, com certeza.
De repente apareceram
por cá e ficaram para sempre. Havia lá uma guerra ou coisa parecida.
Nós mudámos de casa e
eles estabeleceram-se na sua própria casa, cada qual em sua, pois ao todo eram dois
tios, duas tias e quatro primos. Um dos casais teve um contentor cheio de
coisas durante algum tempo ao pé do Tejo. Eu estava morta de curiosidade pelo
contentor. Primeiro, o que seria um contentor? Segundo, pelo tamanho que diziam
ter com certeza até leões lá estariam, não era em África que viviam? A minha
tia não era apontada como tendo uma pontaria de invejar? Nem Deus sabia o que
podia estar no tal de contentor.
O outro tio era
enfermeiro razão pela qual foi o último a chegar, no último navio que veio de lá
e vieram muitos e muitos aviões, parece que ao todo eram meio milhão de pessoas
e se ele foi o último, foi o número quinhentos mil, que coincidência, ninguém é
um número tão certo, os nossos bilhetes de identidade são uma mão cheia de números
ao calhas, a licença de caça do tio Eduardo a mesma coisa, a carta de condução
do meu pai a mesma coisa, o número da licença da mota do avô a mesma coisa e é
a mesma coisa com toda a gente, à excepção do Tio G. que foi o número
quinhentos mil, maning de giro.
Trouxeram a voz
arrastada, com uma espécie de sotaque que era diferente do sotaque do Florival,
o filho da vizinha da minha avó que estava na Suisse que, num processo contrário
ao da Coitada, mais tarde se transformou em Suiça.
Traziam hábitos
diferentes, roupas diferentes e queixavam-se muito do frio mesmo em dias onde não
fazia frio. Mas lá não havia frio? Que coisa mais esquisita para as pessoas não
saberem o que é!
Para além das palavras
que eles trouxeram houve uma outra que ficou na boca de toda a gente, repetida
até à exaustão: Retornados.
Não havia frase, conversa,
telefonema, que eram raros, cartas ou jornais que não os mencionassem. Os vizinhos
apontavam-nos com dedos e olhares sussurrantes, os ladrões de empregos que
andaram lá a matar pretos e a fazer mulatinhos e agora estão aqui.
Quando o tio G. chegou
nós sabíamos que ele vinha e fomos esperá-lo a Lisboa. Toda a minha atenção se
centrou naquele barco e n o r m e onde ele tinha viajado. De tal forma que uns
dias depois o meu pai convenceu-o a deixar-me acompanhá-los quando ele voltou
ao navio para ir buscar uma coisa muito especial: a Milú, a pastor alemão
arraçada de leão da Rodésia sobre a qual já aqui falei.
Eis que agora tudo me
vem à ideia, que até nisto a leitura é boa, auxiliar de memória, não ao estilo
do Hilário, mas como luz que se acende algures cá dentro da massa cinzenta.
O Retorno, de Dulce Maria
Cardoso é emocionante e emocionado, vivo numa respiração que ainda resiste em
cada re-olhar as fotografias, em cada lembrança, em cada partilha dos que
viveram de alguma forma aqueles tempos.
A esperança e a
desilusão, o passado quente, o presente gelado e o futuro mais incerto que
nunca, completamente desconhecido, as personagens tão reais, a escrita tão fluída
e verdadeira, que nas conversas e nos pensamentos não há parágrafos nem pontuação.
As boas intenções que
enchem infernos estão ali todas, bem como as más, as assim-assim, as irreconhecíveis,
tudo bem juntinho a perfazer um romance inesquecível, soberbo onde o desdém e a
desconfiança convivem com a esperança de uns, as dúvidas de outros, misturando
os caminhos de todos.
Conheci alguns Ruis de
casacos brancos e mangas curtas demais e sempre achei que cada um deles valia
um mundo que transbordava. Dulce Maria Cardoso provou-o neste livro magistral.
Livro sem gralhas,
edição da Tinta-da-China, 2011.
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