sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Ler a Rebate


Em todos os telhados obliquamente preparados para receber a neve que nunca caí por essas aldeias, em toda a gama de azulejaria variada, em todos os Mercedes de capot brilhante, em todas as môts de todas as conversas pronunciadas as mais das vezes um pouco às avessas, em toda a generosidade e até na ostentação dos emigrantes emana um carinho difícil de explicar, sente-se.
Um regresso é sempre um regresso, mete saudades e sorrisos, acorda sentimentos, cria confrontos entre cá e lá, mostram-se manias novas, recordam-se hábitos adormecidos.
O Rebate é um regresso vivo, duro e cru, de tal forma que é de pouca dura. Ninguém aguenta.
Os meneios da linguagem fazem-nos ver as imagens descritas, os diálogos não dizem tudo mas expressam-se como olhos que captam e fazem de muitas palavras inúteis verbos. Não é preciso dizer tudo, este autor não precisa dizer tudo pois dizendo meio faz-nos chegar além de onde outros nos levariam se dissessem tudo.
As meias palavras carregadas de raiva, de inveja, de sorte alheia, nunca nossa. Nunca, caramba.
Imagino a dificuldade que será traduzir um livro assim, um livro que é mais que um livro, um relato da alma de uma aldeia, com passados e presentes, e futuros desejados de forma tão díspare do que se adivinham, com tanto de implícito como de conhecedor de realidades e palavras e reacções e gestos e, mais difícil ainda, meios-gestos e, ainda mais difícil, intenções, que bastam elas para que outros se mexam adivinhando, fazendo, desfazendo.
Não descansei até que cheguei à última página e se o livro em si é essência, as últimas páginas são como que uma bibliografia da alma do autor, uma mostra da recolha de sítios e lugares, de pessoas e situações.
Ao escrever assim, José Rentes de Carvalho dá-nos uma hipótese única, a de relermos como quem revive a vida verdadeira, como quem volta ao passado, sem hipótese de o mudar, mas de o voltar a sentir.
Ter um livro assim na prateleira é como ter um animal de estimação que tem uma vida própria tão intensa que receamos salte da estante sozinho, não precisamos de o olhar ou ler para saber que ri e se entristece, que nos faz companhia e emite um barulho mudo, chamando.
Para reler, agora sabendo da estalada que se leva ao consumir vida em estado puro.
Lido em edição da Quetzal, de 2012. 

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