quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

A rapariga que não gostava de livros com capas dobradas - XII

Minha querida Irmã

Finalmente és livre de novo. Nem imaginas a nossa alegria...
Lamentamos não vos poder ver já, mas vamos fazer os possíveis para ir ao teu encontro em breve.

À medida que lia estas palavras ia chorando pela emoção da carta em si e a constatação que não se iriam encontrar tão depressa criou-lhe uma amargo na boca que a obrigou a baixar o tom de voz da leitura. Mas onde estaria esta gente que não aparecia, pensava ela com alguma raiva de permeio, continuando a ler.

Tudo isto parece saído da pena do nosso adorado Robin Cook.
Já viste as fotografias dos teus sobrinhos? Mandei duas ao Paulinho, pois ele também não os conhece. Devemos-te uma explicação sobre o motivo do nosso afastamento do Francisco. Não te vou esconder nada: ele nunca acreditou na tua inocência e garanto-te que só não trouxemos o Paulinho porque ele é pai dele e não deixou. Mas agora tudo será diferente, embora ainda tenhamos que ser filhos dum Deus menor. Por favor não faças nada que possa prejudicar-te e mantêm-te sossegada e calma. Adorávamos presenciar o teu reencontro com o Paulinho, que deve estar enorme e já não deve brincar com o Pinóquio nem gostar de ler estórias do Zé Carioca.
Não posso deixar de te dizer que descobri uma pérola!
Provavelmente já a manuseaste e já te deu as mesmas delícias que me tem dado e iguais ou semelhantes gargalhadas. Chama-se O Ingénuo e vem da pena de Voltaire logo, é coisa recente, dada à estampa com certeza absoluta durante estas tuas ‘férias’, aproveitando a tua ausência... não tem mais que meia dúzia de páginas e conta uma história fabulosa onde cada palavra se identifica com crítica social e grita bem alto, como um xis na janela.
Não me alongo mais, desejo que o nosso reencontro seja em breve para te ver e te abraçar.
Conforta-te a ler a Bíblia e recebe beijos de muito amor e confiança de todos nós.
T.

Ainda não tinha terminado a leitura da carta e rebentou num pranto enorme, acumulado, misturado de saudades incríveis e de uma enorme confusão. A carta era estranhíssima mas o facto da irmã ter mencionado um qualquer livro que lera mostrava-lhe que para ela tudo era como antes e que nada mudara. À memória vieram-lhe momentos que até à leitura da carta lhe pareciam ter acontecido há várias eternidades e agora, de repente, pareciam ter sido ontem, de cumplicidade com aquela irmã, que lhe manifestava o seu amor daquela forma. Por outro lado, não sabia o que pensar da irrealidade de tudo aquilo, era da sua cabeça ou havia uma carta secreta dentro daquela carta, escrita com palavras cujo sentido só ela entendia?
O filho abraçava-a e ela não conseguiu esconder-lhe o que pensava e depois de ter limpo as lágrimas novamente disse:
- Esta é a carta mais estranha… para começar, nós detestávamos Robin Cook, ao contrário do que ela diz, ou seja, primeira mentira. Depois, nova referência aos filhos dum Deus menor, o que quer dizer que me está a mandar ficar calada. Depois, o Pinóquio e o Zé Carioca… dois mentirosos inveterados…
- Mãe, as coisas que tu vês numa simples carta… e que mais?
- Para finalizar, isto se não me está a escapar nada, o xis na janela, que significa que eu devo confiar… mas confiar em quê e em quem?
- Não sei mãe… acho isto tudo muito estranho…
- Escreve claramente para eu ficar sossegada e depois enche a carta de pistas que me indiciam mentiras! Mas a tua tia estará bem de saúde…? – disse, enquanto lhe passava pela cabeça que a irmã pudesse ter enlouquecido – Até me pede para ler a Bíblia!
- E esse outro livro de que ela fala?
- O Ingénuo? Não sei o que é...
- Teremos isso cá em casa mãe? Se calhar quer-te dizer qualquer coisa... tens a certeza que não o leste?
- Absoluta! Por uma simples razão, é que se eu o tivesse lido, ela lembrava-se; mas tens razão, lá dentro pode estar qualquer coisa, mas agora deixa-me reler isto tudo outra vez.
Enquanto se voltava a sentar no sofá poeirento o filho levantou-se como se o assento não aguentasse duas pessoas ao mesmo tempo e quando um se sentasse o outro tinha que se pôr automaticamente em pé. Dirigiu-se a uma das estantes e perguntou com pressa na voz:
- Mãe, temos uma Bíblia cá em casa, certo? Onde está?
- Onde está… onde está? – respondeu a mãe levantando-se novamente e começando à procura da Bíblia pois mesmo sem terem dito nada, ambos pensaram o mesmo, e foi com uma enorme excitação que tiraram o grosso volume encadernado a castanho duma das prateleiras e nem queriam acreditar quando viram cair de dentro dele um envelope.
Rasgaram-no apressadamente e ficaram estupefactos ao encontrarem dois passaportes com nomes falsos – ao lado das suas fotografias estavam os nomes de Rosa e Luís, de naturalidade brasileira - indicações para ir até Madrid, aí apanhar um avião e não levar bagagem. O cartão com estas recomendações era de pequenas dimensões e estava escrito a computador. Por cima tinha uma fita-cola transparente a fazer um xis.
Agora não tinha dúvidas, a sua irmã, a sua família toda tinham enlouquecido! Teriam ficado tão perturbados com a sua prisão que tinham perdido o juízo? Mas que loucura era aquela? Ela tinha saído da prisão no dia anterior e já lhe tinham posto em casa um passaporte falso? E o filho? O Paulinho era menor… mas estavam todos malucos, ou quê?
Paulo andava atrás dela a acalmá-la mas parecia não ter qualquer efeito tranquilizante sobre a mãe que, ora ria ou chorava, lamentando a sua pouca sorte.
- Querem matar-me do coração? Será isso? – os olhos quase lhe saltavam das órbitas com o espanto de tudo aquilo – Eu que resisti a três anos de cadeia, agora saí para isto…?
-Mãe, mãe olha só… – dizia o filho com um dos passaportes na mão – nasci em 1992! Sou maior! Este passaporte diz que tenho 18 anos!
Mas a mãe não o queria ouvir, era emoção de mais para um dia só, o pequeno almoço do dia anterior fora tomado numa prisão, tinha saído dela pela porta principal com cumprimentos das guardas e desejos de boa sorte, soubera que o mundo que deixara cá fora estava virado do avesso e agora ainda isto? Que raio de brincadeira de mau gosto vinha a ser toda esta história?
As cartas dirigidas ao filho cheias de pistas, a carta dirigida a si própria – e metida debaixo da porta! – cheia de sinais de mentiras! Os documentos falsos e as indicações para fugir do país, raptando o seu próprio filho? Mas onde estava aquela gente com a cabeça? Saberiam o que era estar-se preso? Porque razão lhe indicavam que agisse de forma a voltar para a cadeia? Eram demasiadas perguntas sem resposta, isto sem falar do facto indiscutível que estavam a ser vigiados ou seguidos, caso contrário como lhe eram entregues as cartas e como lhe tinham posto o envelope dentro da sua própria Bíblia? Ela é que fora presa, acusada de ter traficado droga, mas aqueles comportamentos eram dignos duns mafiosos quaisquer! Em que se teria metido a sua família?
Estava tão absorvida por toda aquela loucura que quando o telemóvel do filho tocou, deu um grito e dois passos atrás, assustada.
- Calma mãe… é só o telefone – tranquilizou-a o filho.
- Olá pai
- …
-Sim, está tudo óptimo… levantámo-nos agora
- …
- Não pai… eu fico aqui com a mãe.
- …
- Pai, ouve-me por favor… eu não vou de férias contigo, vou ficar aqui com a mãe – e levantando a voz acrescentou – e não vamos discutir pai, por favor, hoje não…
- …
- Tá pai… tá… daqui a pouco vou a casa
- …
- ‘pa ti também.
O rapaz desligou e abraçou a mãe.
- Mãe, acho que a tia quer que tu deixes a carta aqui para se alguém a ler, pensar que ela te aconselha a fazer tudo direitinho… não achas?
- Paulo… não acho nada… diante disto tudo estou incapaz de achar seja o que for…
- Olha, vamos comer, sim? – disse-lhe o filho para a acalmar -Vamos a uma pastelaria nova que abriu há uns meses e tem uns pães com chouriço divinais. Vamos esquecer esta história toda por uma hora, mãe…
A mãe nem conseguia sentir o bem estar com que sonhara que seria a primeira noite fora da prisão, sem barulhos, sem toques para o pequeno almoço, sem guardas e sem tabuleiros e louça de metal. Sentia que tinha sido pisada por uma manada de elefantes e achava impossível esquecer fosse o que fosse, porém a fome falou mais alto. Antes de saírem ainda pensaram o que fazer com as cartas e com os passaportes, manifestando uma certa inquietude pelo facto de alguém ali ter entrado, pois era óbvio que isso tinha acontecido e, à falta duma ideia melhor puseram tudo na mochila de Paulo e levaram-na com eles.
Não se cansava de pensar na referência ao xis na janela, sinal indiscutível que devia confiar, e que vinha dos tempos em que viam os Ficheiros Secretos, bem como a necessidade de segredo absoluto, dada pela indicação dos filhos dum Deus menor, cuja acção se centra numa rapariga muda.
A sua saída da prisão coincidira com as férias escolares e passou-lhe pela cabeça agarrar no filho e meter-se no avião, sem dizer nada ao – ainda – marido. Depois pensou que viriam atrás dela uma vez que o filho era menor e que passaria o resto da vida na prisão, não, não, não, não podia embarcar naquela loucura, tinha que seguir as indicações expressas na carta, esquecendo as entrelinhas, os passaportes e tudo o resto. Por outro lado, a sua família era tudo para ela e a ideia duma aventura assim, de mão beijada, não deixava de a atrair, tanto mais que o filho não se calara um segundo incentivando-a a aceitar.
- Mãe, é fácil... o pai vai agora de férias e eu fico contigo... quando ele for embora, nós também vamos e tu podes dizer que lhe telefonaste e ele nunca atendeu.
- Tu estás tão doido como a tua tia, o teu tio e os teus avós!- respondeu-lhe ela, abrindo-lhe os olhos pela primeira vez.
- Mãe, tu própria viste as pistas que ela te deixou, leste as cartas dentro das cartas… por favor, deve ser qualquer coisa muito importante… temos que ir… mãe…
- Vamos dizer ao teu pai que ficas comigo esta semana. Não quero falar daqueles doidos agora.
Paulo ouviu então mil pedidos e recomendações de segredo absoluto sobre tudo aquilo, mesmo ao amigo mais próximo que ele jurou cumprir.
Enquanto o filho falava ao telefone com um amigos, e antes ainda de ir a casa do pai buscar roupa e reafirmar que não viajaria no dia seguinte com a sua nova família, ela deteve-se a pensar como é que a irmã, cuja última actividade que lhe conhecera era entregar correio numa agência de publicidade, tinha dinheiro para estas coisas, e que contactos mantinha para mandar fazer, por exemplo, passaportes falsos. O que teria acontecido em três anos que ela ainda não sabia?
Era sábado. Durante três anos pouca importância tiveram os dias da semana, à excepção de domingo onde, quem queria ouvia missa. Foi com o filho e ficou a saber onde era a casa nova de Francisco, que reagiu tal como ela esperava: fez um pé de guerra à porta da sua nova bela casa, onde não lhe foi franqueada a entrada, insistindo que o filho não ficaria com ela, nunca na vida, e ela pensou que iria novamente para a prisão, não por passar droga mas por homicídio do próprio marido.
Paulo berrou e gritou e ameaçou com mil argumentos incluindo que fugiria na primeira oportunidade se o pai não o deixasse ficar com a mãe.
- Uma noite, uma noite só e já lhe fizeste a cabeça, não foi?
Francisco destilava raiva e olhava-a com os olhos semicerrados.
– Pai, a mãe não...
- Cala-te! Já disse que vens comigo e não ouço nem mais uma palavra.
- Paulo, vai a casa por favor e deixa-me falar a sós com o pai por favor.
O rapaz olhou os dois com as lágrimas a rebentarem-lhe pela cara abaixo, ainda hesitou, abriu e fechou a boca, mas lá deu meia volta e deixo-os sós.
- Francisco, eu sei que tu... – começou ela.
- Tu não sabes nada! Tu não sonhas o que é que eu passei nestes anos, eu e o Paulo! Tu não imaginas o que foi lidar com as pessoas, com mil perguntas, com sorrisos fingidos a dizerem ‘Coitadinho’, por ironia, aquela palavra que tu odeias! Tu não sabes nada...
- Francisco, posso falar?
- Não, não podes... acabaste de sair da prisão, ele é teu filho, é verdade, mas não vais ficar com ele, nem hoje nem em tempo algum. Olha bem para ti... não tens trabalho, a tua família abandonou-te, não tens do que viver, vais fazer o quê? Escrever um livro sobre a vida na prisão e esperar que renda e viver disso? O meu filho vai comigo de férias como estava planeado e se tu gostas dele, se amas o teu filho, o bom senso diz-te para fazeres como eu digo, pois sabes que eu tenho razão.
As lágrimas corriam-lhe pela cara misturando a tristeza com a confusão de sentimentos, emolduradas por uma gigantesca desilusão.
- Francisco, tu sabes o que foram para mim esta longa sucessão de meses? Tu consegues ter uma pálida ideia ao menos? Não consegues, tu...
- Deixa-te de...
- Não te interrompi! Ouve-me agora a mim e não mais teremos que falar! Não quero nada de ti, nada! Mas o Paulo é meu filho e tem 16 anos... se formos a tribunal, o meu bom comportamento vai ser tido em consideração e vai prevalecer porque eu sou mãe! Vão perguntar-lhe com quem é que ele quer ficar... eu vou estar empregada, sim porque eu vou começar a procurar hoje já e ainda há pessoas boas que me darão emprego, e ele vai dizer que quer ficar comigo! E ainda há outra razão para ele ficar comigo: ele sabe e acredita do fundo do coração na verdade: eu sou inocente, coisa que tu nunca questionas-te porque me deste logo a sentença, ainda antes do juiz! Por isso Francisco, se não queres uma guerra para a vida, e eu faço-ta até depois da eternidade, deixa o Paulo ficar comigo! Deixa o Paulo escolher!
O marido não a olhava de frente, cerrava os dentes na direcção do infinito, com vontade de lhe bater. Se fora declarada culpada, é porque havia motivos para isso e agora, depois das dificuldades que ele tinha tido durante aqueles anos, a educar e a tomar conta do filho, como é obrigação dos pais, ela aparecia e estragava tudo? Por outro lado, ele sabia da teimosia dela quando metia uma coisa na cabeça e os mesmos anos que ele vivera só com o filho, a tentar domar-lhe o espírito rebelde, parecido com a mãe, sempre com respostas na ponta da língua como se o pai fosse culpado de eles estarem na situação em que estavam, ela tivera tempo para pensar o que faria se isto acontecesse. Além disso, o filho, só para o chatear, era bem capaz de fugir de casa ou fazer disparates ainda maiores. A sentir uma raiva enorme, mas sem querer ceder, disse:
- Deixa-me falar com a Adelaide, que...
- Com quem? Tu estás bêbado? A vida do meu filho não é discutida com outras pessoas sem ser o pai ou mãe! Decide-te aqui e agora!
- Vê como falas... enquanto estavas a cumprir aquilo que o tribunal determinou – e Francisco carregava e a arrastava as palavras para as fazer doer ainda mais – ela ajudou-me e muito e ajudou o Paulo... se ele te contar a verdade, já que dizes que ele acredita na verdade, ele vai-to contar.
- Não digo o contrário, apenas te reafirmo que ninguém decide por nós e por ele: só nos três.
Ficaram em silêncio uns momentos, Francisco virou-se de costas, fechou os punhos e baixou a cabeça. Olhou na direcção da sua casa e viu Paulo encostado à ombreira, à espera do fim da conversa entre os pais. Acenou-lhe com um braço, fazendo-lhe sinal para que se aproximasse e disse:
- Paulo, ouve e não me interrompas: ficas com a tua mãe mas quando eu voltar, vamos ao tribunal e eu vou pedir para ficares comigo e...
- Mas pai eu...
- ESCUTA-ME! Se queres ficar em Portugal esta semana é assim e eu confio em ti para cumprires este acordo quando eu vier. Vamos esperar que a tua mãe encontre trabalho, que estabilize a vida dela e depois, depois logo se vê novamente... entretanto já tens dezoito anos e depois então decides o que...
- Pai! Vou esperar dois anos?
- Ou é assim ou... – Francisco levantara a voz e ela decidiu intervir.
- Ouçam-me –e virando-se para o filho – Paulo, vamos fazer assim como o pai diz, vamos passar esta semana juntos, vamos conversar os dois e voltamos a falar com o pai quando ele vier. Está bem assim para todos?
Para Francisco não estava nada bem, mas lá condescendeu deixar o filho com a suposta passadora de droga, exigindo mil garantias e expondo repetidamente o desgosto e a vergonha por que tinha passado por culpa dela, bem como a serenidade da sua vida actual, coisa que ele não ia permitir que uma ex-presidiária lhe roubasse. Ela ainda se riu interiormente e pensou que fora presa sim, mas nunca acusada de roubo e que mesmo que lhe roubasse alguma serenidade, ele tinha-a para dar e vender, pensou tudo isto, mas nada disse, com receio de que ele voltasse atrás na sua decisão e estragasse os planos todos. Calou-se com um nó gigante na garganta ajudado pelos papéis que ele lhe entregava e onde pedia o divórcio.
- Queres que assine já?
O silêncio dele dizia-lhe que podia ler e que os esperava assinados quando regressasse uma semana depois, duma viagem que ela adivinhava guiada por alguém com um bandeirinha na mão, ou um chapéu de chuva, dependendo do tempo e do lugar para onde iam, com o rebanhinho todo atrás em ordeira filinha.
Despediram-se com a ligeireza fria duns adeuses rosnados e Paulo disse ao pai:
- Eu ligo mais tarde...
- Não, não ligas, tu ficas aqui comigo o dia de hoje! Temos que conversar os dois sozinhos sobre a lavagem ao cérebro que ela te vai fazer.
Ouviu aquilo e sentiu perder a força dos braços. A onda de lágrimas que quis invadir-lhe os olhos foi travada por uma onda enorme de revolta e de humilhação. Beijou o filho em silêncio e afastou-se a passos largos em direcção a casa, sem vontade de visitar fosse quem fosse.
Francisco passou o resto do dia com o filho a orientá-lo sobre o que devia fazer na sua ausência e a acautelá-lo sobre a mãe pois as pessoas quando saem da prisão vêm com certos vícios, paranóias e manias. Garantiu-lhe que teria o telefone ligado 30 horas por dia e exigiu-lhe que lhe ligasse à menor coisa, para além do telefonema diário que ele próprio faria para o telemóvel do filho. Adelaide, a sua companheira, ainda tentou demover Paulinho, falando-lhe da maravilhosa estância de férias para onde iriam e prometendo-lhe comprar este mundo e o outro, tendo obtido tanto sucesso como um palhaço num cemitério. Jantaram cedo e Paulo conseguiu que o pai o levasse a casa da mãe, onde esta o esperava com maior ansiedade do que tinha sentido para sair da prisão.
Nessa noite, o filho chorou intensamente e contou-lhe que houve momentos muito difíceis e que logo no primeiro ano tinha passado na escola graças a uma professora que o ajudara muito pois, caso contrário, teria chumbado. A mãe ia acariciando-lhe a cabeça de forma terna e dizendo-lhe que tudo fazia parte do passado. Mas o miúdo tinha uma pergunta, entre muitas, que o queimava:
- Mãe… achas que ficaste com as culpas de alguém que tu conheces?
- Não sei... não sei nada... e agora não quero saber, não quero pensar nisso... na prisão não há muito tempo para pensar ao contrário do que te possa parecer... temos tarefas distribuídas e chegava ao fim do dia cansada... só com tempo para pensar em ti, mais nada. Alguém da agência falou convosco?
- A D. Elizabete é quem telefona sempre... manda beijinhos e diz-me que se precisar de alguma coisa que lhe diga.
- Ai a D. Elizabete...
- Mãe, ela até me dá prendas nos anos e no Natal e eu... bem, eu até pensei que ela...
- Ela o quê? – quis saber a mãe
- Bem, eu até pensei que ela fazia isto como uma forma de... uma forma de se desculpar...
- Oh filho, não acredito nisso- disse ela percebendo o raciocínio do filho. – A D. Elizabete não está metida em nada, além disso, ela sempre te deu prendas no Natal e nos anos, verdade?
Conversaram ainda por bastante tempo, vendo e revendo as fotografias de Santiago e Elena, tiradas num fundo com cenário de árvores e floresta, tão bonito que parecia verdadeiro. Finalmente, o filho adormeceu e ela sentou-se a fumar, com as palavras de Francisco dirigindo-se ao filho a ecoarem-lhe na cabeça “Temos que conversar os dois sozinhos sobre a lavagem ao cérebro que ela te vai fazer” e imaginando a conversa que teriam tido sobra a qual o rapaz nada dissera. Olhou a papelada que a irmã lhe enviara. Um envelope com mil euros, um cartão com o nome de alguém que os esperaria no aeroporto – Manuel Vega – e dois bilhetes de avião para Lima, a partir de Madrid, sem data marcada. Vinha também a recomendação da necessidade de telefonar para determinado número a informar que viajariam com, pelo menos 24 horas de antecedência.
Lima. Então eles estavam mesmo no Peru.

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