segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

A rapariga que não gostava de livros com capas dobradas - IX

Pensou que teria um ataque de coração antes de sair da prisão na manhã seguinte. Acordada há horas, sem conseguir comer devido à ansiedade, vestiu as suas roupas, meteu os únicos pertences, as fotografias, no cano das botas e foi chamada ao Director da prisão que lhe entregou uma carta proveniente de Santa Cruz e que a fez rebentar em pranto.
Era um postal mal alinhavado de Damiana desejando-lhe as maiores felicidades do mundo e pedindo-lhe que não a esquecesse. O director explicou que a carta estava com ele desde a sua transferência, mas que a reclusa pedira para lhe ser entregue na sua última manhã na prisão. A medo, mais da resposta do que de fazer a pergunta, quis saber:
- Por acaso, não tem mais cartas para mim...? Da minha família..?
- Lamento, não há mais nada, a não ser um conselho, que espero que acate: mantenha-se na sua vida sem fazer disparates. Como sabe, vai sair condicionalmente e ao menor desvio volta a fazer-nos companhia. Você é mãe e tem o direito e o dever de desempenhar esse papel, mas não esqueça que o dinheiro não é tudo na vida...
Ela percebeu onde o homem queria chegar e, com um arrepio na coluna, reviu mentalmente o seu julgamento e a acusação de tráfico de droga. Com um sorriso triste disse:
- Bem sei que não me acredita mas...
- Sim, você está inocente. Calcula as vezes que ouço essa afirmação? Nem lhe passa pela cabeça... agora, inocente ou culpada, vai sair em liberdade e está nas suas mãos ficar lá fora ou regressar para o interior destes portões. Felicidades.
Saiu a pensar que se fosse culpada teria recebido dinheiro e onde estava esse dinheiro, alguém o descobrira nesses três anos?
A guarda que a acompanhou ao gabinete do director, e que assistia à conversa, mantinha o ar de compaixão. Chamava-se Lina e tinha, na adolescência, sido acusada de roubo. Depois de se provar a sua inocência concorrera para guarda prisional e, num processo que até foi noticiado na comunicação social, por ser tão nova e ter sido antes acusada dum crime, conseguira o lugar. Era uma mulher que se dera bem com ela no primeiro momento em que se viram e que ela, interiormente, sabia ser uma pessoa que acreditava na sua inocência.
Lina levou-a para fora do gabinete do director e desejou-lhe as maiores felicidades na vida. Sorriu-lhe em forma de agradecimento, não conseguindo falar, com a voz embargada e dominada pelo pensamento que, lá fora, a poucos metros, estava a sua família, quem sabe há quanto tempo, há quantas horas perdidas, para a resgatar do inferno. Mas aquilo que tinha como certo afinal não correspondia à realidade.
Quando saiu da prisão ninguém a esperava à porta o que a fez sentir uma tristeza maior do que a que sentira quando fora presa. Ter-se-iam esquecido ou estariam atrasados? Ou pior ainda, pensariam que ela era culpada e não a queriam ver? Em três anos pensa-se muito e alguma coisa devia ter acontecido para não estarem ali em romaria. Voltou a pensar nos pais e na casa que tinham posto à venda e sentiu uma mistura de sentimentos e emoções que a confundiam. Estava livre, mas presa à beira daquele portão. O que fazer?
Cansada de esperar, começou a caminhar e viu uma paragem de camionetas com duas mulheres sentadas no banco. Ficou ali à espera não sabia bem de quê, com a secreta esperança que, de repente, ia parar ali um carro com a sua família onde todos falariam ao mesmo tempo dizendo que tinham tido um furo ou qualquer coisa do género que os tinha atrasado. Mas a camioneta chegou primeiro e ela apanhou-a em direcção a Oeiras.
Sentada na parte traseira, pela primeira vez, pensou que estava em liberdade, e vendo a paisagem a correr pela janela, apesar da enorme desilusão, conseguiu sorrir.
Saiu junto à estação de comboios e apanhou um em direcção a Lisboa, já decidida a procurar o marido no emprego, com urgência de notícias do filho. Enquanto o comboio avançava foi ficando com um misto de euforia por se aperceber cada vez mais que estava em liberdade, mas aumentava-lhe em simultâneo o nó no estômago, convencida cada vez mais que uma desgraça horrível tinha acontecido:
- Porque não foram buscar-me? Nem o meu marido, nem o meu filho?
Chegada ao Cais do Sodré, com quase duas horas de liberdade, foi a pé em direcção ao Terreiro do Paço, devagar, a gozar o ar livre e a pensar que podia mudar de passeio se bem lhe apetecesse. Subiu a Rua Augusta não detectando grandes diferenças daquilo que se lembrava e desembocou na Praça do Rossio. Avançou em direcção à Avenida da Liberdade onde o marido trabalhava, ou melhor, achava ela que trabalhava pois depois da saída sem vivalma à porta da prisão, estava a preparar-se para tudo.
Porém, não havia preparação para o choque que sentiu quando viu o olhar frio e distante do marido a olhá-la e, num reencontro cruel, em vinte minutos descobriu que o marido vivia com outra mulher numa nova casa, a irmã estava casada e tinha dois filhos, os pais haviam vendido a casa e tinham-se todos mudado, e o filho estava óptimo, ia com o pai de férias dentro de três dias e dispensava ensinamentos sobre como funcionava uma prisão.
Ela que tinha ali chegado com o coração nas mãos, pois sentia que, apesar de tudo, amava o marido, sentiu-se afogar, sem ar suficiente a entrar-lhe nos pulmões. Ela que tinha pensado dias, meses e anos no reencontro e que, sabendo que não seria uma fonte de calor, pois a maneira de ser do marido não o deixava agir com emoção, mas esperava umas boas-vindas um pouco mais emotivas, um abraço, um beijo, e algumas perguntas, Como te sentes? Trataram-te bem? Tivemos muitas saudades... e, principalmente, Acreditamos em ti, sabemos que foste presa injustamente... não ouviu nada disto.
Os meses de clausura deram-lhe a calma necessária para não ripostar às provocação e foi com olhar firme e sem admitir cenas que reclamou a presença do filho, que conseguiu finalmente, por entre as negas do marido, que lá lhe garantiu que ele se encontraria com a mãe.
Conhecia o marido, a sua frieza e a sua distância, porém, decididamente, aquele não era o Francisco a quem fora arrancada naquela tarde e mais parecia um qualquer guarda de Santa Cruz do Bispo, cuja profissão o obriga a ser duro e inflexível, sem qualquer lugar para emoções. Aos olhos dela e naquele momento, Francisco não parecia humano, mas antes alguém que parecia tirar prazer da sua dor e não ficou nada espantada por constatar que ele a via como culpada.
- Onde vais viver? – perguntou-lhe o marido em jeito de despedida.
- Eu tenho uma casa e tenho intenção de voltar para lá.
- Temos muito de conversar como deves imaginar… quero vender essa casa, mas podes lá ficar por agora… eu vou falar com o Paulo e ele vai lá ter contigo. Por favor, presta atenção ao que lhe contas da tua estadia…hã… da tua ausência. Tens dinheiro?
- Pouco – respondeu pensando no que já tinha gasto da quantia que lhe deram na prisão para os gastos mais imediatos.
- Muito bem, aqui tens 50 euros, para qualquer coisa que precises e de certeza que receberás a tua parte depois da venda da casa e não te preocupes que eu pago as despesas do divórcio.
Assentiu, agarrou a nota e viu o marido a voltar-lhe as costas. Dirigiu-se a uma paragem de autocarros, desejando que a linha não tivesse sofrido alterações e ainda passasse perto da sua casa, constatando que de facto assim era.
Francisco nem lhe tinha feito uma só pergunta pessoal, se estava bem ou não estava, nem tão pouco sobre a sua eventual inocência, prova de que ele estava convencido da sua culpa.
Em pouco mais de meia hora estava diante do prédio onde habitara mais de dez anos, subiu ao primeiro andar direito devagar, como antes quando carregava os sacos de compras pelas escadas acima, abriu a porta com a chave que o – ainda – marido fora buscar ao seu novo BMW e que ainda mantinha o porta chaves com a imagem do Bom Jesus de Braga que compraram não se lembrava quantos anos antes, e entrou nas três assoalhadas que mantinham as janelas fechadas.
Entrou lentamente, não a medo, mas tentando proteger o seu coração que batia com cada vez mais força à vista de tanta coisa familiar e percebeu imediatamente que no quarto do filho faltava imensa coisa, o seu estava na mesma e a sala também e recordou com enorme nitidez a última manhã em que ali tinha acordado, em que ali tinha tomado banho e se tinha vestido, em que ali tinha tomado o pequeno almoço, a mesma manhã do dia em que sentira abater-se sobre si a tragédia, a dor e a indignação da injustiça. Correu os estores e relembrou a entrada do filho naquela casa, acabado de sair da maternidade, para um quarto decorado pela sua própria irmã, cheio de coisas fofas como nuvens no final dum dia de Verão; lembrou-se duma festa de aniversário surpresa que fizera ao marido, numa noite de chuva em que vários amigos o esperavam na escuridão da casa e em como o surpreenderam quando ele estava a tirar os sapatos completamente encharcados e em como se tinham sentido próximos um do outro quando se deitaram depois da casa se ter esvaziado de gente aos poucos e ao longo da noite.
Agora, ali sentada no sofá cheio de pó e a cheirar a mofo, pensou que não estranhara o comportamento do marido e não se surpreendeu consigo própria pois, de certa forma, esperava-o, na medida em que sabia que ele nunca a amara, apenas e tão só se habituara a ela e não lhe estava no sangue mudar fosse o que fosse por sua iniciativa; concluiu que lhe fizera um favor dando-lhe margem lícita para ele a deixar e não se admirou por ele ter arranjado companhia pois não era homem para viver sozinho com as suas inseguranças, e enquanto estes pensamentos lhe ocorriam de forma serena sem dramas nem ciúmes, sentou-se no sofá e ficou a olhar para as prateleiras cheias de livros, cheias de pó e cheias de si própria, tentando saber se ainda se lembrava onde estava o quê, pois cada título tinha um lugar só seu, graças a uma arrumação cuja organização só ela sabia, e tão depressa se encontravam todos os títulos dum determinado autor, como logo ao lado, estavam vários autores misturados, por serem da mesma editora, assim como coexistiam lado a lado na prateleira porque eram do mesmo assunto, mas fosse como fosse tudo tinha uma razão de ser na cabeça dela e, enquanto ali estava sentada e olhava as lombadas, iam-lhe passando as mais variadas coisas pela mente, histórias misturadas com biografias, romances com livros técnicos, livros infantis com poesia e sem qualquer preocupação deixou as lágrimas correrem-lhe pela cara, e ali ficou até que tocaram à campaínha.

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