quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

A rapariga que não gostava de livros com capas dobradas - XI

Paulinho querido
Nunca esqueças que mesmo em dias carregados de nuvens, o sol está lá atrás sempre presente, não nos abandona e mesmo que não o vejamos ele dá-nos vida. São palavras da tua mãe, deves tê-las ouvido muitas vezes, e tens que acreditar nelas. Por mais bêbeda que esteja a casinha, o resultado final vai ser feliz.

- Olha isso aí... não percebo o que isso quer dizer...
- A casinha bêbeda? – perguntou a mãe a quem as lágrimas caiam pela cara baixo.
- Sim. Isso quer dizer o quê?
- Espera que já te explico...

A tua mãe está inocente e nem que demoremos vinte anos vamos provar isso. Sabes que queremos muito estar contigo mas agora não é possível. O teu pai gosta muito de ti e tens que o perdoar quando ele se arrepender de não ter acreditado na tua mãe.
É importante que dês a ler o que te mando à tua mãe logo que ela esteja contigo.
Não te esqueças de comer um pãozinho de leite todos os dias e...

- Oh mãe... eu nem gosto de pão-de-leite! E ela sabe isso... – interrompeu o rapaz.
- Espera filho – respondeu a mãe, para quem aquilo fazia sentido e continuou:
Não te esqueças de comer um pãozinho de leite todos os dias e estuda muito, bem sabes que a escola é a coisa mais importante.
Recebe beijos e abraços muito fortes de todos nós e rios não poluídos de saudades
TT

- Atão mãe...?
- Espera... dá-me outra... explico tudo no fim – disse-lhe a mãe ainda digerindo o TT de Tia Teresa e adoçando a ponta dos dedos sob a fonte arial, mas imaginando a caligrafia redonda e perfeita da irmã.

Paulinho querido
Ou será só Paulo? Deves estar enorme...mas garanto-te uma coisa, não estás maior do que as saudades que temos de ti...
Esperamos que a escola vá bem e que te apliques, sabes como isso é importante para o futuro e como a tua mãe deve pensar nisso. O tempo vai passar depressa e brevemente estaremos juntos de novo. Adorava saber que leituras fazes, se já leste Júlio Verne e se o trauteias.

- Mãe... quem é que trauteia Júlio Verne?
A mãe não conseguiu evitar uma gargalhada e continuou:

Deves ler também autores estrangeiros e aconselho-te as Vinhas da Ira, dum autor americano chamado John Steinbeck. Como é um bocado pesado podes compensar vendo um filme divertido, por exemplo o Beijo Francês. Garanto-te que te vais rir.
A fotografia que enviamos é do Santiago, teu primo, com quem esperamos que tu te dês muito bem.
Os avós mandam galáxias de beijos e nós também.
TT

Paulo estendeu-lhe outra dizendo:
- A seguir foi esta.

Querido Paulinho
(vais ser sempre Paulinho até aos 100 anos)
Já namoras? Deves estar um rapaz fantástico e andar por aí a partir os corações das miúdas lá da escola, temos a certeza! Imagino-te como se fosses uma maravilha do mundo, a mais alta, a mais cultivada, a melhor. Todos os dias abrimos os braços como se fossem asas de desejos, para te abraçar e damos graças por faltar cada vez menos tempo para nos voltarmos a ver e temos a certeza que a ânsia da tua mãe por fazer o mesmo é enorme e calorosa, como o continente africano de que ela tanto gosta. Por falar nisto, já viste um filme que se chama África Minha? Tem paisagens encantadoras e conta uma história muito bonita. Não percas a oportunidade e vê-o e quando estiveres com a tua mãe conversam sobre ele.
Tem força Paulinho, que isto está quase a acabar e vamos encontrarmo-nos em breve.
Triliões de beijos e saudades
TT

Demoraram imenso tempo a ler dez cartas, pois ela leu algumas três e quatro vezes, a pensar se não lhe estaria a escapar nada, viram as fotografias de Santiago e Elena dezenas de vezes e quando terminaram, o rapaz pediu-lhe irrequieto:
- Vá lá mãe...
- O pai leu as cartas? – perguntou a mãe inquisitiva.
- Sim, leu tudo.
- E tu disseste que não percebias algumas coisas?
- Ele também não percebeu! Disse que a Tia Teresa tinha parvoíces destas e que devia pensar que eu já tinha vinte anos para perceber certas coisas...
- Como te hei-de explicar isto... – começou a mãe indecisa e trémula, de pé, a andar dum lado ao outro da sala– quando a tua tia disse para mas dares a ler era porque, na verdade, estas cartas são para mim e estão cheias de pistas!
- Pistas? Pistas de quê? - o rosto do rapaz iluminou-se.
- Ela dá-me informações através das cartas, ora vamos ver: a casinha bêbeda é dum livro, cujo nome não me lembro, e conta a história de duas irmãs separadas.
- Vocês!
- Sim, nós. O pãozinho de leite é doutro livro que se chama O Mistério do Jogo das Paciências e...
- E quer dizer o quê? Que tenhas paciência? - perguntou o jovem impaciente.
- Calma... sim... pode ter várias interpretações: para eu ter paciência, que há aqui um mistério qualquer e...
- Há isso há, estou a ver que sim...
- ...e também pode fazer referência a um jogo... mas não estou a ver qual... nós jogávamos tanta coisa… cartas, trivial, personagem incógnito… espera… - e a mãe de repente sorriu – é isso!
- Isso o quê mãe? – perguntava-lhe o filho ansioso.
- Personagem incógnito! Eles estão incógnitos em qualquer sítio, só pode ser isso!
- Incógnitos?? Porquê??
- Isso também eu queria saber, mas nós chegamos lá… se ela nos manda estas pistas é porque não pode falar, percebes? Mas ela quer dizer-nos alguma coisa…
- E o Júlio Verne trauteado? Quer dizer o quê?
A mãe continuava a andar dum lado para o outro com as cartas meias amarrotadas na mão a fazer raciocínios.
- Ela não se refere a um livro e sim a uma série da televisão com muitos anos e que era baseada num livro do Júlio Verne: Dois Anos em Férias! E eu passava a vida a trautear a música!
- Sim, mas quer dizer o quê? – perguntava Paulinho entusiasmado e acrescentando: - Eu tenho o livro, se soubesse já o tinha lido...
- Não sei bem... pode referir-se à minha ausência... mas ela sabia que eu adorava aquela história... e eu não adorei a minha estada na prisão... – ia dizendo a mãe mais para ela própria do que para o filho enquanto ia caminhando pela sala em volta dum sofá cheio de pó e a cheirar a mofo, e relia passagens das cartas.
- Leste As Vinhas da Ira? - perguntou a rir.
- Não... li aí dez páginas mas aquilo não me entusiasmou... mas vi o tal filme e achei giro...
- A ideia não era fazeres nem uma coisa nem outra, mas ela quer-me dizer qualquer coisa ligada a vinhas, uvas, vinho...
- Ah pois era... no filme ele tinha umas vinhas na França!
- Isso mesmo! Só não percebo a razão de tanto segredo... mas havemos de descobrir... há aqui mais coisas... maravilha do mundo mais alta e cultivada... vês? Outra referência a culturas e depois fala em África Minha... - e voltando-se para o filho – viste o filme?
- Sim, ela tinha uma herdade em África! – disse Paulinho entusiasmado.
- I had a farm in Africa... – repetiu a mãe com os olhos marejados e acrescentou – tenho quase a certeza que a tua tia também tem uma... de quê e onde... não sei... e o motivo deste secretismo todo também me escapa...
- Mãe, a maravilha do mundo mais alta é no Peru... a tia estará no Peru?
A mãe encantou-se com o raciocínio do filho e com a respiração afogueada e o pensamento a grande velocidade disse que era uma possibilidade.
- Ainda há aqui qualquer coisa... – disse a mãe – ou então sou eu que já estou a ter visões...
- O quê, o quê? – quis saber o rapaz.
- Asas do Desejo... isto não é inocente... Asas do Desejo é o nome dum filme que conta a história dum anjo que voltou a ser homem...
- E...? – quis saber o filho.
- E... não sei bem... fala de regresso, é evidente. Dum anjo... que não devo ser eu... e não estou a ver quem é... bem, agora esquece...
- Atão e agora como lhes dizes que já saíste? Como é que eles vão saber que já leste as cartas e já decifraste essas pistas todas? Não temos um telefone para lhes ligar!
- Paulinho... algo me diz que eles já sabem e agora não podemos fazer mais nada. Só esperar...
Conversaram o resto do dia com muito carinho pelo meio, falaram do pai, de Adelaide a sua companheira, dos amigos, da escola, de jogos de computador, de futebol enquanto ela ia pensando o que fazer para descobrir a família e dava voltas sem fim à cabeça imaginando a razão de todo aquele mistério que se mantinha indecifrável.
Foi um dia e noite longos, com um intervalo para jantarem num restaurante familiar perto da sua casa, sempre com muito para dizer e adormeceram já de madrugada com ela a dizer-lhe que no dia seguinte iriam visitar duas das suas amigas.
Mas na manhã seguinte algo lhe mudou os planos e quando se levantaram viram um envelope que alguém metera por baixo da porta. Não tinha remetente mas o filho garantiu-lhe que era dos tios e dos avós.
Foi com enorme emoção que constatou o que já suspeitava, que eles sabiam que ela estava em liberdade. Abriu a carta lentamente como quem quer fazer durar o momento que antecede a felicidade.

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