segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

4 de Março de 2007

Caro Silvestre
Você desconcerta-me na forma mais positiva que posso imaginar… você é a pessoa mais saudavelmente diferente que conheci e estou grata por o ter “descoberto”, por me ter permitido entrar no seu círculo de amizade…diferente.
Descobrir é ir ao encontro do desconhecido.
Há quem o faça por natureza, e cada momento da sua vida assemelha-se a uma escalada, ao atravessar de um rio vigoroso, a uma caminhada ao sol. Mesmo que haja mais maneiras de lá chegar escolhe-se a que contém mais emoção, a que exige de nós mais fibra, não dando sossego ao corpo e à mente, mas alimentando a alma.
Outra forma de caminhar na vida é seguir os trilhos que outros já pisaram e avançar pelo conhecido.
Anda-se mais depressa, chega-se mais depressa. Onde? Ao topo, à glória, ao bom e ao mau e ao fim da vida também.
Quem anda depressa não vê tudo e o que vê não lhe é mostrado com clareza. Vêm com os olhos
Quem vai por onde ninguém ainda se atreveu, é dono, é senhor, é rico, é pessoa completa e cheia. São os que vêm com o coração.
Têm medo? Têm sim senhor; é o medo que os faz avançar. Morrem a meio de certas caminhadas. Morrem sim senhor, mas correram o risco que lhes soube melhor que anos de sossego por caminhos acimentados e alcatroados que nos levam depressa onde os outros querem, não exactamente onde nós queremos ou onde o acaso nos levaria.
Ah, sagrados cânones que nos orientam!
Ah, princípios éticos que nos regulamentam!
Ah, cabeça, tronco e membros do bom comportamento!
Ah, substância formal da boa convivência social!
Ah, teatro da vida, que passas anos sem nos dares um intervalo, sempre com a mesma peça em cena, repetindo o guarda roupa, falando eternamente a mesma língua, para espectadores sentados sempre no mesmo lugar.
As cenas já foram repetidas tantas vezes que todos já esqueceram que o próprio teatro é uma encenação e as deixas não são sentidas, alguém as escreveu para que outro alguém as diga.
O teatro é uma fé. Não sabemos porque acreditamos, não interessa perceber, não interessa dissecar, não interessa contradizer. Interessa contracenar. Já sabemos como vai continuar, conhecemos de cor o actor que vai entrar a seguir: vamos rir, mas o que nos apetecia era chorar? Se esperarmos um pouco, entrará outro actor que nos satisfará, mesmo que nesse preciso momento nos apetecesse mesmo rir. Mas não podemos. Porquê? Porque estamos a seguir o trilho que alguém construiu para nos facilitar a vida.
Pararemos para descansar, não quando estivermos cansados, mas quando encontrarmos o abrigo que foi construído para nos proteger. Lá dentro não faz frio, que nos engelharia as mãos, podemos tomar banho, para que não cheiremos mal…aos outros.
Podemos tirar as botas (da moda) e massajar os pés, para aliviar a caminhada que foi dura porque foi feita à pressa, para quê ir devagar se o caminho era tão bom, sempre ali debaixo dos nossos pés e nos permitia continuar com elegância para sermos os primeiros a chegar?
Os outros, os que andam mais devagar, os que escolheram os atalhos e trilhos pouco conhecidos e por explorar, quando chegam, chegam atrasados e o abrigo está cheio. Ficam lá fora. Conhecem a chuva e o vento, já viram vezes sem conta o arco Íris na lua, que outros nem sequer ouviram falar. Mas, também, a quem interessa o arco Íris da lua? O que se ganha ao ver-se um arco Íris na lua? Só pode ser uma aberração fruto da imaginação de um frustado, de um anormal, de um maníaco, de um obcecado.
Por vezes, alguns daqueles que conseguem chegar ao abrigo, acordam de noite com insónias e fumando um cigarro de sucesso, olham da janela bem calafetada a fogueira cujo fumo vai inquinar ainda mais os que a rodeiam. Sentem a tentação de sair, para saber se a noite está quente ou fria, o que conversam os anormais lá fora, mas não o fazem. Não seria correcto, perderiam o lugar no abrigo e pior ainda, sentir-se-iam a trair todos aqueles que elegantemente dormem à sombra da protecção do abrigo. No dia seguinte, estes olheiros, comentarão com os outros normais o mau aspecto da fogueira, a maneira concupiscente como os outros estavam deitados lá fora e, por meio de metáforas, darão a entender que até os ouviram peidar-se. Que horror!
E o teatro continua, sempre a ser interrompido pelos barulhos e pelos cheiros dos anormais.
Oh, neurónios indigentes que levam a boca a dizer obscenidades e a repetir impurezas e não se curam nunca.
Como podem ter esperança de entrar na peça? Mesmo tendo o papel de pedra da calçada, daria buraco.
Como poderão um dia, ser normais?
Será que não se apercebem que tudo tem uma altura e um momento certo na vida? Há horas para comer e beber, há momentos para agrafar papéis, há alturas para andar de bicicleta, há instantes para ver o por do sol, há minutos para nos pentearmos, etc. e por ai fora.
À força de quererem caminhar fora do empedrado, os anormais, muitas vezes fogem da vista do mundo. Perdem-se.
Coitados, na sua maioria são maníaco-depressivos, com obsessões que não lhes permitem ser normais. Nunca serão felizes. Coitados. São ridículos, teimosos em não quererem ler o guião da peça que deveriam estar a representar. Nunca sabem o que vai acontecer a seguir, que parvos!
Não pensam nas consequências e depois queixam-se. Querem coisas novas querem experiências, querem conversar sobre coisas sobre as quais não se conversa, querem emoções. O que querem é perder o controlo e não saberem nunca o que vai acontecer a seguir, isso sim!
Toda a gente gosta de aventura e mistério. Está previsto que assim seja, e para tal lê-se um livro ou vê-se um filme. Está no guião.
Em última análise estas pessoas, estas criaturas, são um perigo. Como se pode saber que não têm um efeito contagiante, que o seu interior não contém vírus e bactérias como por exemplo vontade de rir, impulsos sexuais incontroláveis, olhares penetrantes, ondas do mar, música por tocar, amanheceres acordados, uma camisola para dois, beijos a desconhecidos, livros emprestados lidos em voz alta, almoços só de vinho e outras barbaridades ainda mais bárbaras que não se podem descrever, porque são actos cometidos fora do tempo próprio, antes ou depois do momento em que estavam programados, absoluta e completamente fora do guião?!
Cada pessoa tem direito a encarnar um personagem e apenas um e tem como missão convencer-se que é esse personagem, de preferência um protagonista de qualquer coisa. Quanto mais depressa decorrer este processo de auto-convencimento, de auto-conhecimento, mais depressa se alcandora à felicidade!
Os anormais mudam de personagem constantemente. Para quê? Só dificultam a sua própria vida. Nem dão tempo a que eles próprios se conheçam e não respeitam a respeitabilidade dos outros, que se mantêm iguais a si próprios, coerentes, uniformes, ou seja, normais!
Aqueles anormais são loucos. Só podem ser.
O pior de tudo é que, por vezes, vestem a pele de uma personagem normal e confundem as pessoas efectivamente normais. Divertem-se a cometer estes crimes.
Como descobrir um deles? Facilmente: arquitectam conversas que nada têm a ver com a realidade, com o guião. Falam de coisas estapafúrdias, dizem o que pensam e o que sentem. Não têm sentido. Se virmos bem as coisas, nem existem. Afinal, não estão no guião.
Bem, agora é o momento de ir à casa de banho.
Camila

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