terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

A rapariga que não gostava de livros com capas dobradas - X

O filho, agora com 16 anos, estava de férias escolares e proporcionou-lhe um reencontro quente e cheio de urgência de abraços e partilha de lágrimas. Jurou-lhe que estava inocente e que tinha sido vítima duma grande injustiça. Disse-lhe que estava desempregada mas que havia de se desenrascar. Que desejava acima de tudo que ele a amasse e que passasse algum tempo com ela. Que queria saber de tudo o que lhe tinha acontecido durante a sua ausência e carregava nele o olhar de desejo de perdão pela distância e calou-se surpreendida quando o rapaz lhe agarrou nos ombros e a abanou, obrigando-a a olhá-lo nos olhos e disse:
- Mãe, não acredito que tenhas feito nada daquilo.
- ...e não fiz... mas ninguém acredita em mim.
- Eu acredito mãe, e a tia também e a avó e o avô...
A menção à sua família provocou-lhe um suspiro que parecia electrizado e a fez acordar:
- Paulo, afinal onde estão eles? O teu pai nem me deixou espaço para lhe perguntar... os teus avós estão bem? Não me mintas por favor...
- Para dizer a verdade, não sei – o tom de voz era triste e afastou o olhar do da mãe - Não os vejo à bué, acho que vivem na Alemanha… escrevem-me de vez em quando, mas nunca mais os vi e não lhes posso escrever porque as cartas deles não têm remetente...
- O quê? Nunca mais os viste desde quando? Abandonaram-te? E as cartas não têm selos de correio? E carimbos? E olha...
- Mãe, calma... Não têm nada! Acho que eles pedem a alguém para os pôr na caixa do correio! Isto faz-me muita confusão, mas o pai diz que é melhor assim. Passado p’raí dois ou três meses de tu teres sido... sabes, presa, eles convidaram-me para jantar na casa dos avós e a Tia Teresa fartou-se de chorar e de me beijar e de me dizer que eu nunca a esquecesse e eu não percebi porque era aquilo. Depois disse-me que ia voltar à Alemanha com o Robin e até combinámos que ela me vinha buscar nas férias e...
- E foste à Alemanha filho? – perguntou tentando mostrar um sorriso.
- Não mãe... eles nunca vieram e passado algum tempo os avós foram ter comigo à escola e disseram que iam ter com ela e foi uma cena esquisita e...
Paulo começou a chorar e a mãe chorou com ele, enquanto pensava Que raio de coisa é que se passa aqui? Que não me fossem buscar à prisão é uma coisa, mas abandonarem assim o neto e o sobrinho...
Não, decididamente havia muita coisa a explicar.
- Paulo, querido, preciso que me contes tudo o que te lembrares. Este comportamento não é normal... e o teu pai o que dizia?
- Mãe, sabes como é o pai... achou bem o afastamento e ficou todo contente quando a Tia se foi embora. Houve sessões de gritos entre nós porque ele não queria que eu visitasse os avós porque eles iam estar sempre a falar em ti e o pai dizia que isso não era bom para mim... quando eles também se foram embora, pronto, ficámos só nós os dois... e ela.
A referência era clara à companheira do pai. Para o acalmar, a mãe, embora com dúvidas de convicção, disse-lhe:
- Não te preocupes... vamos encontrá-los.
Era-lhe difícil acreditar que a sua família tivesse desaparecido do mapa por vontade própria, mas cortarem relações com o sobrinho e neto, era outra coisa diferente que ela não compreendia. Havia ali um mistério qualquer muito estranho mas como não queria preocupar o filho e desejava acima de tudo aproveitar aquele reencontro, decidiu pôr o assunto de lado, pelo menos temporariamente e passaram o resto do dia a conversar enquanto iam dando um jeito à casa, suja como um castelo abandonado na Idade Média.
Por duas vezes o telefone do filho tocou e, das duas vezes, ela ouviu-o dizer a rir:
- Não posso falar, ‘tou com uma miúda...
Tudo era motivo de mais beijos e novos abraços, e risos e lágrimas. O filho estava enorme, alto como ela nunca imaginara, já tinha barba e uma voz que em nada se parecia com a vozinha do garoto que ela deixara há três anos com o pai. Fazia-lhe festas na cara e nas mãos sem se cansar e obrigou-o a dar inúmeras voltas para que o pudesse ver bem visto, sempre com interjeições de espanto e de admiração. O rapaz foi pondo-a a par do que acontecera no mundo durante a sua ausência: cataclismos naturais, guerras, eleições, mortes na família, etc. Algumas das coisas ela sabia pois as companheiras iam tendo informações através das visitas, coisa que a ela sempre fora negada. Paulo fez-lhe imensas perguntas sobre a prisão às quais ela respondeu de tal forma que ele lhe retorquiu:
- Algo me diz que tu estás a fazer um relato ‘vida é bela’...
Perante o olhar surpreendido da mãe, ele acrescentou:
- Mãe, lembras-te do filme ‘A Vida é Bela’? Aquele filme é uma treta... quem já tenha estado num campo de concentração sabe isso... não se vê ali lixo, nem ratos, nem nada... eles andam vestidos normalmente, nem sequer estão rasgados... e tudo o que me estás a contar eu já vi em filmes...
- E tu por acaso já viste algum campo de concentração para falares assim?
- Sim, já vi... fui com a escola e estive quinze dias num intercâmbio com uma escola polaca, perto de Cracóvia... tu terias adorado ir... sabes, nem todos quiseram entrar e o setôr que nos levou disse que quem não quisesse, não tinha que entrar. Mas eu fui porque sabia que tu ias gostar que eu visitasse o campo e pensasse em tudo o que vi.
A mãe não conseguiu esconder as lágrimas, abraçou aquele rapaz enorme que nem parecia o seu filho e com quem estava em dívida de afectos, especialmente beijos e abraços.
Deu-lhe razão e explicou-lhe que não era fácil falar daqueles momentos e pediu-lhe que ele lhe falasse do que acontecera logo a seguir à sua prisão. Ouviu o filho descrever-lhe a mágoa dos avós quando ela fora presa, a angústia do pai e a raiva que ele próprio sentira por saber sempre que a mãe tinha sido injustamente encarcerada. Disse-lhe que a tia Teresa escrevera cartas sem parar a pedir uma excepção para a visitar, coisa que nunca lhe fora concedida. Contou-lhe como ultrapassara a sua dor, com palavras e olhares que em nada se adequavam a um rapaz de 16 anos e a mãe leu nessa conversa que ele há muito se tinha tornado adulto pelas circunstâncias da vida.
Falou-lhe das amigas dela que ainda o procuravam e em como sempre lhe davam força e o animavam insistindo na sua inocência. Garantiu-lhe que elas não sabiam que ela saíra, caso contrário teriam dito alguma coisa e a mãe respondeu-lhe que era melhor assim, pois precisava de algum tempo para se adaptar e não queria visitas com a casa assim. Pediu-lhe para, na primeira oportunidade, lhe dar a ler as cartas que recebera da família e foi com imensa alegria que ouviu o filho dizer que as trouxera, pois a tia mencionara que era importante que ele lhas desse.
Retirou-as da mochila, estendeu-lhas e ela viu que estavam atadas com uma fita de cabelo que em tempos lhe pertencera. Começou a choramingar e limpou a cara quando o filho lhe disse:
- Mãe, há aí coisas que não percebo nada...
- Não percebes? Como assim?
- Começa a ler que eu digo-te...
A mãe começou a ler alto mas logo na primeira linha fungou e afastou as lágrimas. Aquilo fora escrito pela sua irmã e ela tinha a certeza que havia um motivo bem forte para todo aquele, aparente, abandono. A explicação residia ali, naquelas páginas e assim que as lesse tudo seria desvendado.
Passou as cartas ao filho e pediu:
- Lê tu, por favor.
O rapaz agarrou nos papéis e começou a ler.

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