terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Xitaca


Nos anos 80 a palavra Xitaca estava presente no dialecto que usávamos para nos expressar no liceu de Sintra. Não, não nos referíamos a uma pequena propriedade agrícola, mas antes ao poiso de (quase) todos os alunos da Escola de Santa Maria, mais do que na própria escola.
Estrategicamente colocada à saída da estação da Portela, ainda hoje se passa diante da porta da Xitaca para se chegar à escola.
A mesa do canto era a mais apreciada, mas qualquer uma servia. Quando combinávamos encontrarmo-nos e não se mencionava o sítio, já se sabia que era na Xitaca.
Bebia-se café e fumava-se. Um ou outro tomava o pequeno-almoço. O espaço apertado ficou saturado de fumo quando se começou a fumar Fortuna, face ao desaparecimento do tabaco português, nem sabíamos porquê, e cravar um cigarro tornou-se uma aventura na qual todos nos especializámos.
O Xitaca recebia toda a gente e o dia em que as mesas faltavam, por estavam ocupadas por desconhecidos, era terrível, muito pior que os professores faltarem às aulas que, naquela altura, nós víamos como um dever que os setôres deviam assumir de vez em quando. Ali cabíamos todos pois bastava estar um conhecido para entrarem duas turmas em simultâneo. A esta distância, pergunto-me como nos aturavam pois chegávamos a encher a pastelaria apenas com a despesa de um ou dois cafés.
No Xitaca contava-se de tudo e foi sentada a uma mesa que ouvi uma colega planear um aborto como quem antecipa a festa da passagem de ano. O assunto era tabu, perigoso e aventuroso, antes de tudo o mais porque não tinha engravidado sozinha! As nossas imaginações voaram para mundos que nunca sonhámos existirem e ouvíamos atentos, alunas e alunos aplicados e prontos a fazer exame da matéria dada.
No Xitaca se faziam as melhores cábulas da escola que eram passadas a outros, que davam opinião e afirmavam que a letra era grande demais, não se via, não se percebia, estavam óptimas, tinham dado grande resultado ao fulano e ao beltrano e se o sicrano tinha tido negativa com elas era porque era mesmo burro.
A bem da verdade, as minhas notas acima do 17 e o facto de ser considerada por vários professores como a melhor aluna da turma em certas disciplinas, e da escola noutras, deixavam-me um bocado à margem destas dinâmicas. Eu queria participar em tudo, mas havia vezes que não sabia como. Mal ou bem lá me juntava à maralha e passava horas e dias no Xitaca a fazer nada.
Há dias organizou-se um jantar da rapaziada que morava lá no bairro onde vivemos 16 anos, na casa que me viu crescer durante mais tempo, onde a minha mãe passou a gravidez da minha irmã, de onde a N. saiu para casar, entre muitas, tantas, outras recordações. 
A organização foi via Facebook onde tenho uma página com um nome inventado, meia dúzia de amigos e que uso para dizer disparates em certos momentos. Ou seja, a lista dos presentes contava com uma figura artesanal, um pouco mítica até e que, durante o jantar, mereceu a confissão de alguns afirmando pensarem que era um homem.
O jantar correu num convívio espectacular, serviram-se memórias e recordações, alguns embaraços, a maior parte deles cómicos, muitas perguntas sobre irmãos faltosos, risadas sobre namoros de adolescência e penso que hoje todos nos congratulamos com o encontro embora nenhum se lembre do que comeu, sendo a comida o pretexto, mas a essência, o encontro em si, foi cinco estrelas.
Às tantas alguém se lembrou de um cromo da escola que quase todos frequentávamos, uma miúda gordinha que estava sempre meia deslocada, óculos graduados na ponta do nariz que deixava ver quando levantava a cabeça dos livros e de quem todos um dia se abeiraram a pedir ajuda para os testes.
Manifestando curiosidade sobre a pessoa levei uma canelada debaixo da mesa e fizeram-me sinal para me manter calada; a amiga que me sugeria silêncio segurava o riso num sorriso que queria rebentar e percebi que falavam de mim. Alguns lembravam-se do meu nome mas tinha passado despercebido à maioria, pois na lista das inscrições constava o meu alter-ego, e poucos associavam a identificação estapafúrdia com um nome real.
Foi desta forma que se repetiu uma cena passada há poucos meses quando se organizou um almoço entre antigos alunos de uma outra escola e eu era a única cujas histórias de chumbos que tinha para contar eram nos dentes. Tal como nessa altura também aqui fui levemente apontada como se tivesse uma aura de uma certa anormalidade e não pude deixar de me lembrar do meu sobrinho que, tendo 20 nas olimpíadas da matemática, ao receber os parabéns perguntou porque se fazia tanto alarido, acrescentando uma pergunta sem resposta: Não era suposto ter acertado em tudo?
Durante o jantar ainda houve quem se lembrasse de uma manifestação feita na escola para reclamar junto de um professor um merecido 20 que me tinha sido substituído na pauta por um 19. O professor alegava que não dava vintes e numa manifestação de solidariedade a minha turma foi em peso ao conselho directivo mostrar indignação pelo facto. Registou-se a situação e o 19 manteve-se.
Eu que era bem redondinha nesse dia estava inchada que nem um pavão e até me podiam ter baixado a nota ainda mais, mas já ninguém me tirava o facto de ter sido por minha causa que aquela malta toda se juntou, reclamou, gritou e uniu.
Vá lá saber-se porquê, não me recordava desse episódio e foi nessa lembrança que as lágrimas me caíram em cima do prato e fiquei verdadeiramente feliz por ali estar, como se fosse de manhãzinha e estivéssemos todos no Xitaca.

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