Uma das memórias mais persistentes ao longo da
minha vida é a de ir visitar o meu pai ao hospital. Perdemos a conta às operações,
desde um simples arrancar de amígdalas até ao corte e costura das veias das
pernas, um trabalho de patchwork cirúrgico, em cujo último acrescento fomos
informados que já nada havia a fazer. A partir dali era cortar. Um pé.
Esta espada sempre pairou sobre as nossas cabeças
como as nuvens altas que levam chuva mas vão descarregá-la noutros locais. Até um
dia. Não se fala desse dia, não vale a pena, é ir vivendo 24 horas de cada vez
e deixar o tempo passar.
Vai chegar uma altura em que a nuvem não se afasta
e larga uma borrasca em cima de nós. Esse dia tem vindo a aproximar-se,
sorrateiro, e agora manifestou-se oficialmente sob a forma de obrigação de nova
operação, ainda em Janeiro.
Concientes das implicações, estamos em pânico. Damos
força ao doente mas por dentro arrepiamo-nos até ao último osso e contemos a
vontade de chorar.
Sabemos que há coisas piores mas neste momento
esta é a pior de todas.
Imaginamos o amanhã com cadeiras de rodas, com próteses,
com mudanças profundas numa dinâmica de vida que hoje é quase normal, fruto da
utilização do carro. Pensamos num carro adaptado e no euromilhões para o
conseguir.
Pensamos nas nossas próprias vidas e na revolução
a que vão ser sujeitas se quisermos que o meu pai continue a fazer parte das saídas,
que assista aos jogos de andebol do Duarte, aos de pólo aquático do meu
sobrinho, que possa ir visitar amigos, ao café, de férias,…
A última semana foi desgastante para mim em termos
de trabalho e esta notícia arredou-me da vontade de falar e até de escrever,
como se meia dúzia de palavras tivessem o condão de nos paralisar os braços, as
pernas, o pensamento, a vontade própria.
Faço um esforço para me concentrar em tudo sabendo
que a minha condição de bibliotecária, e não de médica, não me fará dar ajuda
substancial mas desajudarei, e muito, se ficar a moer o assunto.
Lembro-me do meu querido M., agora em Angola, e
dos seus conselhos valiosos face a qualquer coisa sobre a qual nada podíamos fazer.
Tento segui-los com pouco sucesso, mas com muito esforço e empenho: dispersar o
pensamento, agarrarmo-nos a mil coisas e instituí-las como essenciais no nosso
cérebro; aceitar dez trabalhos diferentes em simultâneo, estar com amigos e
beber uns copos. Confesso que me apetece e muito… mas por ora entrego-me ao
trabalho que, convenhamos, me tem ajudado bastante e nunca me agradou tanto uma
onda assim como agora.
Pensamento positivo e esperança, convenço-me eu,
rapariga sem fé pois, na verdade, quem tem fé não pode ter esperança. Mas isto
são outros quinhentos para outro dia. Fiquemo-nos pelo pensamento positivo.
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