terça-feira, 30 de outubro de 2012

Presa por ter cão e presa por não ter


No silêncio sussurrado da biblioteca avisam-me que um aluno se está a sentir mal. Trago-o para o meu gabinete com queixas de tonturas, má disposição geral, grande desconcentração e desorientação. Informo-o que vou chamar uma ambulância. Ao telefone vou respondendo às perguntas do 112: se lhe custa olhar a luz, o que comeu, há quantas horas, etc. Pedem que esperemos.
Peço ao aluno o contacto do pai ou mãe, de um irmão, da namorada, de alguém a quem comunique que ele não está bem. Ele recusa, alegando que os pais não podem atender o telefone durante o dia. É peremptório, não há mais alguém, eu que não me preocupe.
A voz estranha, meio arrastada, algumas frases que não terminam, palavras estranhamente repetidas, fazem-me dar a volta por outro lado e pedir ajuda na Secretaria para que nos facultem um contacto de um familiar. Um colega disponibiliza-se a dar o telefone do pai do aluno em questão.
Antes de ter tempo de lhe ligar, avisam-me que chegou a ambulância. Acompanho-os ao local onde está o rapaz. Fazem-lhe meia dúzia de perguntas e informam que o vão levar para o Hospital, face a um estado de desorientação total, de tal forma que permitem que uma de nós vá na ambulância.
Assim que saem a apitar e com as luzes a acender e a apagar ligo ao pai. Identifico-me e a meio da curta explicação de poucos segundos o pai começa a gritar comigo! Quem é que me mandou chamar uma ambulância? Porque não lhe liguei mais cedo?
A surpresa foi de tal ordem que a desorientação me apanhou também a mim, por alguns segundos. Lá me recompus, pedi-lhe calma e… nova explicação interrompida por mais uns gritos em que ameaçava que eu me iria arrepender de não ter tirado o telefone ao rapaz e lhe ter ligado imediatamente a ele!
Se com o primeiro grito me desorientei, com o segundo já não: falei mais alto dizendo-lhe que a pessoa em questão, que por acaso é filho dele, tem 21 anos e se não me quer facultar um número de telefone, está no seu direito. Tirar-lhe o telefone e procurar um contacto de um familiar, isso era se ele tivesse 8 ou 10 anos! Além disso, é nossa obrigação chamar profissionais de saúde quando alguém não se sente bem e o filho dele sentia-se muito mal! De negligência, eu não seria acusada! 
Não podia ficar mais espantada com o que me disse a seguir: se a ambulância ainda não saiu, ponha-se à frente dela e impeça-a de sair!
Isto foi dito em nova torrente de gritos. Pensei que não valeria a pena continuar e, falando mais alto, informei-o que o filho se dirigia ao Hospital de S. José, um resto de boa tarde!
Liguei para a minha colega que tinha acompanhado o rapaz, avisando-a que o pai ia a caminho (achava eu!) e que não era pêra doce.
Estavam a aguardar na sala de espera quando chega a descontrolada figura paternal. Calmo, normal, agradecido. Ficou com o filho e agradeceu, agradeceu, agradeceu!
Desconheço as razões de tal comportamento, completamente estapafúrdio.
Passada uma semana encontro o jovem e pergunto-lhe como está. Alegre e bem-disposto, agradece os cuidados, afirma que está bem, que foi excesso de estudo, aliado à necessidade de mudar as lentes dos óculos, muita preocupação com os testes, enfim, uma combinação explosiva. Diz que já me tinha procurado para me agradecer e… pedir desculpa pelo comportamento do pai. Enfim… 

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