terça-feira, 23 de outubro de 2012

A caminho do Funchal


Os voos low cost não têm lugar marcado, razão pela qual me sentei assim que vi o primeiro vago do lado da coxia. Terceira fila, lugar do meio ocupado por um homem com cerca de 50 anos. Assim que me sentei, agarrou no telefone e disse a alguém que se apressasse, que não podia guardar o lugar. Em menos de um minuto aparece uma trintona afogueada que me pede licença e passa para a janela.
Ele manifestou-lhe a ansiedade e disse-lhe que nunca mais podia trazer aquela quantidade de bagagem, que para além do preço a mais, era uma maçada depois terem que esperar pelas maletas. Disse-o com um tom que foi passando de incomodado para compreensivo, passou pela tolerância e foi terminar naquelas vozinhas abebezadas que se fazem quando queremos mimar alguém ou mostrar que não estamos zangados.
Apesar do espaço ser parco ele lá conseguiu por-se de perna cruzada, a dele por cima da perna dela e foi dizendo fosquices que a levaram a pedir que parasse, meia encarnada, ao que ele ripostou que ninguém ouvia. Contendo-me para não rir, deu-me vontade de lhe dizer que qualquer pessoa nos bancos à volta estava pronta para fazer revisão daquela matéria, de tão claro e audível ele tinha falado.
Enquanto os outros passageiros se acomodavam nos buracos vagos, ele destrocou a perna, agarrou no telefone e avisou um bacano que estava a chegar: avião (onde ele estava) rimava com amigão (o que o esperava no Funchal), com jantarão (o que iriam comer juntos), com abração (o que lhe enviava). Aproveitou também para lhe dizer, desviando-se ligeiramente da sua companheira e, obrigatoriamente, aproximando-se (ainda mais!) de mim que a gaja também ia.
Achei extraordinária a observação, o facto de ele pensar que não se ouvia, o facto de se estar nas tintas, enfim…
Terminado o telefonema ligou um portátil mas foi toca e foge pois a hospedeira espanholita pediu-lhe que não o fizesse. Ele cumpriu, contorceu-se novamente, cruzou a perna e foi depositá-la em cima da pernoca dela, muito nervosa por ir aterrar no Funchal, que tinha uma pista muito pequenina e era sítio perigoso. Mas qual perigo qual quê? Não estava ali ele? Isto era percurso que ele conhecia de cor e salteado e acalmou-a com beijinhos e abraços e carinhos, enquanto ela me controlava com o canto do olho e dizia olha as pessoas
Para a ajudar a descontrair começou a dissertar sobre o sítio onde iam jantar, que servia tanto comer que até te vais vomitar toda… Tive pena de não ter decorado o nome do restaurante para me lembrar de nunca lá ir, mas com tanta informação a ser debitada não tenho cabeça para tudo! A seguir falou-lhe do bacano que os esperava no aeroporto, que ele conhecia desde pequeno e avisou-a, passando à velocidade da luz de um tom ternurento para um de ameaça, que não lhe desse abébias, que ele conhecia-o bem e ele comia tudo o que lhe aparecia.
A esta hora já eu estava com a impressão do bilhete na mão, o primeiro papel que me apareceu quando meti a mão na mala, a escrever em código estas pérolas românticas.
Rabiscava eu à pressa, quando eles se endireitaram e calaram. Discretamente guardei o papel e o lápis no bolso do peito do blusão, a hospedeira pediu-me que metesse as pernas para dentro pois iam passar com o carro e adormeci. Acordei com a mesma senhora – bolas, esse carro demora a passar, hem? – a perguntar-me se tinha o cinto apertado pois íamos aterrar…
Esta coisa boa de dormir quando tenho sono, deitada, sentada, torta, de qualquer maneira, fez-me perder o resto da conversa entre o casalinho meu vizinho, embora tenha acordado a tempo de a ver muito nervosa com o aproximar da aterragem, tendo a rapariga batido palmas como se estivesse na primeira fila de um concerto dos Beatles, apesar de ele lhe dizer, já chega, já chega

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