quarta-feira, 12 de setembro de 2012

O tempo dos esqueletos


A história de amor dos meus pais é digna de um filme. Estão casados há 47 anos e namoraram 8, um namoro repartido por cartas de amor e muitas visitas do meu pai à aldeia onde a miúda morava, aldeia fronteiriça e com um posto da Guarda Fiscal, sendo ele o filho mais novo do cabo da Guarda. Antes dele tinham nascido seis e, para além da prole, os pais acolhiam ainda uma avó.
O primeiro par de sapatos recebeu-os quando entrou na escola e era um de cada nação, nem sequer do mesmo número, coisa que nos levava a perguntar quem teria levado da loja um par errado e que não tinha reclamado a anormalidade. Os dele foram os últimos, razão porque não podia escolher outros.
Sendo o mais novo, ficava com tudo o que já tinha servido aos irmãos, ao contrário da minha mãe, filha mais nova do dono do talho da aldeia, a quem o pai adivinhava os desejos e satisfazia as ideias mais bizarras.
A carne que lhe sobrava a ela faltava-lhe a ele, em todas as medidas: o magricela que só tinha ossos cheirava a gordura com que o comer era feito enquanto a rapariga, com 90 quilos aos 11 anos, comia chouriço e presunto dos bons, feitos em casa.
A dieta a que se submeteu voluntariamente não excluiu a carninha mas deixou-a com cintura com vespa e com o epíteto da rapariga mais bonita da aldeia.
O pedido de namoro, ao pai da miúda, correu muito bem: o sogro deu-lhe uma sova e ele correu como um profissional das olimpíadas, dali para fora. Só muito mais tarde foi aceite mas, quando o foi, foi na qualidade de filho verdadeiro, desenvolvendo-se uma relação única entre sogro e genro.
Assim, o namoro do filho mais novo de uma família muito pobre, repositório de restos, com a filha mimada de uma família a que nada faltava, foi uma sucessão de inusitados acontecimentos; assim, ela esticava um braço e comia o que lhe apetecia e ele ia aos pássaros, apanhava-os, depenava-os e comia-os, assim como tudo o que apanhasse e lhe pudesse confortar a barriga; assim, ela comia um cacho de bananas sozinha, o que a levou a ter que ser assistida por um médico e a não comer bananas durante mais trinta anos, e ele também tinha que ser visto pelo médico por ter comido não sabia bem o quê, mas que o punha doente, cheio de diarreias e carregado de febres.
O pai dela oferecia carne e fruta a vizinhos com comboios de filhos, e recebia um Deus lhe pague de agradecimento; o pai dele fechava os olhos a contrabandistas que sabia terem rebanhos de filhos, à espera em casa, e cujas mulheres davam qualquer coisa de comer ao filho do Cabo da Guarda quando o viam, como agradecimento.
O homem mais rico da aldeia não podia ter um nome mais apropriado, Sr. Leão, e penso que era sobre uma filha sua que se contava uma história maravilhosa, segundo a qual ela se teria apaixonado perdidamente por um empregado do pai, de condição sócio-económica oposta à sua. Numa ocasião, e diante de todos os trabalhadores, ela ter-lhe-á lançado um desafio, dizendo:
- Vou fazer-te uma pergunta… se acertares, casas comigo. Branco é, galinha o pôs, o que é?
O rapaz, terrivelmente embaraçado e para não criar constrangimentos ao patrão, que assistia à cena, respondeu uma laranja, ao que a rapariga sorriu e disse:
- Acertaste! Agora casas comigo!
E casou, com o beneplácito do pai, cuja fortuna podia ser grande, mas que não era maior que o seu próprio romantismo e se havia alguém que podia ser romântico, era ele, pois uma taleiga de azeitonas e uma fatia de pão para se comer num dia inteiro de trabalho no campo, não dava espaço a romantismos.
Os relatos que sempre ouvi, na primeira pessoa da parte do meu pai e de terceiros, da parte da minha mãe, eram de coisas tão distantes que pareciam estórias e não histórias. Eram relatos do tempo das vacas magras, vacas essas que eu nunca vi, em termos estruturais.
Hoje soube que a mercearia ao lado da minha casa foi assaltada de novo: levaram todo o pão, garrafas de azeite, limparam a fruta, os legumes e as latas de feijão e grão. Porque seria?
Levantam-se os esqueletos dos tempos de grandes dificuldades que viviam nas memórias, e apresentam-se aos nossos olhos como num filme do velho Oeste, carcomidos e abandonados. E vacas gordas são desenhos de crianças, que tendem a exagerar o tamanho das coisas.

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