Ponho a máquina da roupa a
lavar depois das dez da noite para usufruir da tarifa bi-horária. Estendo-a
antes de me ir deitar, o que pode acontecer às onze da noite ou às três da
manhã, depende do sono.
Independentemente da hora, sei
que diante da minha janela vou encontrar uma luz acesa: a da avó Zé. Não conheço
a senhora, não sei como se chama, nunca falei com ela, mas para mim, para a
minha irmã, é a avó Zé.
Há duas avós Zé no meu círculo
familiar. Nenhuma destas Marias Josés é minha, mas ambas me são chegadas e
queridas. Uma é sogra da minha irmã e por via dos meus sobrinhos, também eu lhe
chamo avó Zé. A outra é sogra da minha cunhada, dona de uma simpatia que lhe
calhou por engano pois, como diria alguém que eu conheço, as sogras não são
assim. A minha vizinha é uma versão da primeira avó Zé.
Estende a roupa dentro da
marquise e alisa-a, alisa-a, alisa-a. De minuto a minuto debruça-se na varanda
para confirmar se o vento não enrolou a roupa estendida na corda. Tudo é feito a sorrir e com gestos de carinho, inexplicáveis numa tarefa como aquela. Tem prazer no que faz, antecipa a carícia dirigida ao dono da roupa, ou ao momento em que ela própria a vai usar ou vestir. Imagino que assim seja porque já a vi com o marido, penso eu que seja marido, à janela. Calmos e serenos, ela apanha roupa e ele segreda-lhe ao ouvido fazendo-a rir, criando uma imagem de beleza ímpar e que podia servir de anúncio para qualquer coisa que quiséssemos terna e eterna. Agarro nas
molas em câmara lenta para poder não desviar o olhar desta senhora que rarissimamente
vejo parada.
Os vidros da marquise, sem cortinados,
parecem não existir de tão limpos e transparentes, em constraste com os meus
que carregam o rasto de todas as pingas de água que já caíram no mundo e cujo
pó parece alapado, mesmo que os lave de vez em quando.
Também a minha avó Zé nunca tem tempo e está permanentemente atarefada! É capaz
de ver um filme na televisão, em pé, pois está a meio de cinquenta e nove
tarefas diferentes. Tal como a avó Zé minha vizinha, usa sempre uma bata dentro
de casa, tem um penteado tipo peruca que lhe ocupa horas de manhã a ripar,
lacar e aprontar, mas vale a pena pois fica como o Santo que podia correr e até
mergulhar sem que um único cabelo se descoordene do penteado geral. Claro que
nunca vi a minha vizinha pentear-se, ao contrário da avó Zé, a quem já
presenciei várias vezes o ritual matinal. Mas se por vezes estendo a roupa de
noite, também acontece fazê-lo de manhã bem cedo antes de sair e… lá está ela,
penteadíssima, impecável, a tomar conta da roupa. Mantém um sorriso, unhas
pintadas, cantarola qualquer coisa, adivinho-lhe uma noite feliz.
Já me ocorreu que é uma
extraterrestre que não dorme! Pensei nisto porque a avó Zé, minha vizinha, fica
por vezes à janela olhando o céu. Não de braços cruzados, como eu que a olho de
esguelha, mas fascinada, fumando um cigarro, mas em posição de partida, como um
escuteiro sempre alerta. E se um lençol que abana mais vigorosamente lhe chama logo
a atenção e ela se debruça para o acariciar, também não desvia o olhar do
horizonte azul escuro, onde as luzes da cidade escondem as luzes do universo. A
luz da sua própria casa permite-me ver que sorri. Sorri sempre. Olhará com
esperança de ver chegar alguém?
Eu espreito à janela e tenho sempre esperança
de a ver a ela, olho a varanda dela em primeiro lugar, sabe-me bem, mesmo que a
não vislumbre, saber que mora ali uma mulher que tem sempre uma modinha nos
lábios e que, não sei se o sabe, a partilha comigo. Sabe-me bem saber que ali tão perto há uma mulher, na casa dos 70 anos, que com gestos insuspeitos e banais me faz emocionar.
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