Lembro-me da minha amiga L. me dizer repetidas vezes que um dos meus
problemas eram as expectativas: com a perspectiva de um simples passeio eu
colocava-as, segundo ela, na estratosfera e acabava por me decepcionar. Não penses tanto no assunto, não cries
expectativas, caso contrário, quando voltares, não vens satisfeita.
Quando passei pela Pousada da Juventude de Vilarinho das Furnas, num
Junho com nevoeiro e chuva, e decidi que iria lá de férias com os meus
sobrinhos, não sabia que a estadia me traria momentos de tão intensa
felicidade. Sabia que iria ser divertido, mas não me atrevia a sonhar que fosse
tão maravilhoso como foi.
Coincindindo com as férias da minha irmã e com uma deslocação do meu
cunhado ao Brasil, deixámos o elemento mais novo da família com os avós e fomos
os quatro.
Ficámos num quarto com beliches, gaiatos em cima, manas em baixo, sem
televisão, por opção, nem casa de banho, pela economia. Partilhámos a casa de banho
e demos ocasionalmente com os olhos na televisão, depois do jantar, quando
passávamos na sala de estar da Pousada, a caminho da varanda para grandes
jogatanas de cartas e não só.
Jantávamos na Pousada, almoçávamos o que sobrava dos pequenos-almoços,
pão, fruta e iogurtes, e mais qualquer coisa que íamos comprando, eu a tentar
não fugir à dieta.
Do Campo do Gerês a Terras de Bouro, da vila do Gerês à Portela do
Homem, de Torneiros, em Espanha, a trilhos romanos sem fronteiras, passando pelos
locais de culto como a Pedra Bela ou as piscinas naturais, passou-se uma semana
num ápice.
Em Torneiros só falta a torneira para água quente ou fria: a quente sai
e mistura-se com a fresca água do rio, correndo numa cama ladeada de relva, com
fundo de pedra, num cenário digno de filme. Meti a ponta do pé na água quente e
a temperatura fez-me recuar, impossível juntar-me aquela meia dúzia de heróis,
ou friorentos, que ali jaziam ferventes. Espectacular!
De noite jantava-se na Pousada e ficávamos por ali, a descansar da
jornada diária. Jogávamos às cartas todas as noites, mas a brincadeira que
punha os outros hóspedes a olhar para nós, sem dar atenção às modalidades olímpicas
que se iam sucedendo na televisão lá dentro, era um jogo divertido mas que nos
deixa com ar de idiota: os outros jogadores escolhem uma personagem para nós
adivinharmos qual é e o nome é escrito num papel e colado na testa… com cuspo,
pois claro! Assim, todas as noites estavam quatro palhaços na varanda com
papelinhos colados nas testas a tentarem adivinhar quem eram, por entre pistas
que vão sendo dadas, batota que vai sendo feita, enfim, se for para brincar,
tudo se permite!
E tudo isto com uma vista de cortar a respiração diante de nós, que se
ia escondendo à medida que o sol se ia pondo, inventando novos verdes e novos
castanhos, num baile de luz e sombra, do qual sentíamos fazer parte e
respirávamos maravilhados nessa partilha.
Uma das caminhadas foi inesquecível. Saindo da Pousada, passando por
Campo do Gerês, em direcção à barragem de Vilarinho. Daí até ao caminho romano,
pela Mata da Albergaria e daqui até às piscinas da Portela do Homem. Antes de
meio, a minha sobrinha dava mostras de grande cansaço e a invisível artrite
reumatóite da minha irmã ia moendo, em silêncio. Disse-lhes que iria pedir-lhes
boleia ao primeiro carro que passasse e assim fiz. O carro de cinco lugares
tinha três vagos e o casal aceitou imediatamente levá-los. O meu sobrinho
endireitou as costas, apertou-me a mão, encostou-se a mim e disse umas
palavras que me soaram a fórmula mágica:
- Não me obrigues que eu não vou… eu nunca te deixava aqui sozinha,
nunca.
O aperto de mão era intenso, a convicção dele genuína e forte, o amor
que nos une multiplicou-se e fez nascer fogo-de-artifício, ali, naquele instante.
Fizemos o caminho juntos a pé e quando chegámos à estrada alcatroada, a
três quilómetros das piscinas, perguntei-lhe se queria que pedisse boleia, pois
via-o muito cansado.
- Se tu viesses sozinha pedias boleia?
Neguei, sabendo que a caridade da mentira o ofenderia. E assim, fizemos
o percurso todo a pé e chegámos junto das miúdas que nos esperavam para
merecidos mergulhos, não sem antes termos de galgar pedras e troncos, numa
descida alucinante e perigosa, até à água que sabia a mel.
O caminho de volta foi feito de boleia para elas e a pé para nós. Nos últimos
dois quilómetros, ele tropeçava nos próprios pés, eu parava constantemente a
puxá-lo e, sem lhe perguntar nada, pedi a um carro para parar.
Era um Volvo, branco por dentro e por fora, estofos em pele imaculada,
acabados de nascer, diria eu se ali não estivéssemos. A nossa roupa suja, as
nossas botas de caminhar, elas próprias uma pousada de terra e sujidade, as
nossas mochilas cuja metade do peso era pó, contrastavam violentamente com a
alvura do belo do banco traseiro onde íamos sentados, embora o carro transportasse
apenas o condutor que, não obstante ir sozinho e ter dito imediatamente que sim
ao nosso pedido, sugeriu o banco de trás pois o da frente vinha com sacos.
Assim, como se fossemos num táxi do céu, fizemos o último bocadinho e
descemos à porta do Parque de Campismo de Campo do Gerês, local de destino do
simpático senhor. Elas esperavam-nos um pouco adiante, de gelado na boca e água
geladinha a escorrer-lhes pela garganta, na companhia das pessoas que lhes
tinham dado boleia, e que aceitaram o café que a minha irmã lhes ofereceu.
Foi um dia mágico – I do, i do, i do believe in fairies! – e até podemos
ter outros melhores, mas nunca um igual.
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