quinta-feira, 6 de setembro de 2012

À beira do nada

Excepcionalmente, hoje tomei o pequeno-almoço na pastelaria onde só costumo beber café. Eram oito da manhã, a televisão estava ligada e debitava desgraças atrás de desgraças, tantas e todas ensanguentadas, feridas de morte, lavadas em lume, esfrangalhadas por caninos, mostradas em écrans de loucura que me dão vómitos.
É um patamar diferente da loucura política que nos amachuca e espezinha, numa espécie de puzzle que se completa e complementa e que me faz lembrar À beira do fim (Make room, make room, no original) da colecção de Ficção Científica da Caminho de Bolso (com capa azul, que se distinguiam dos policiais que era pretos; foram dos poucos livros que ficaram com o meu ex-marido depois do divórcio).
O autor, Harry Harrison, (morreu há duas semanas) viu o seu livro dar origem a um clássico do cinema, Soylent Green, que projectava o futuro de 2022, longe de 1973 quando foi gravado (e mais ainda de 1966, quando foi escrito), mas próximo agora de 2012.
No livro, a crise demográfica é tão grande, a sobrepovoação do planeta é tão dramática, que se paga às pessoas para morrerem, não só para que desapareçam como também para, com os seus corpos, poderem alimentar o resto da população.
As pessoas que se engalfinham como autênticos cães enraivecidos, e os que teimam em manter cães que diariamente matam outras pessoas, não estranhariam viver num mundo onde o alimento fossemos nós.
Os que desenvolvem esforços para se acabarem com as touradas, espectáculos horríveis e sangrentos que têm de acabar para dar espaço na comunicação social, e na vida!, a outros espectáculos horríveis e sangrentos, mas com protagonistas humanos, também dão excelentes cidadãos desse mundo impensável.
Os maus tratos, as mortes, os danos perpétuos que compõem as paredes sólidas da casa da violência doméstica, e que são como a guerra na Síria, qualquer coisa que se passa algures e que não é nada connosco, nem dariam conta se vivessem em 2022 e fossem alimentados daquela forma.
Os que usam as curvas das estradas como nós corredios de cordas para suicídios colectivos, num acelerar que é sempre lento aos olhos dos condutores, também seriam eleitos.
Indignamo-nos com a desvalorização dos valores morais, mas o facto de não se gostar de alguém é motivo suficiente para lhe enfiar um balázio na testa. Que raio de gente somos nós?
Há muitos anos, ainda aluna da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, ao lado da porta desta instituição vi um homem novo sentado no chão com um cartaz que dizia Liberdade ao Incesto. O meu cérebro lá processou aquilo como um erro de leitura, voltei atrás, reli e confirmei a mensagem. Era mesmo assim. Pelos vistos aquilo vingou sem que me apercebesse e crescemos numa anormalidade a que não se dá importância, engolem-se os dias e nada mais.

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