Excepcionalmente, hoje tomei o pequeno-almoço na pastelaria onde só
costumo beber café. Eram oito da manhã, a televisão estava ligada e debitava
desgraças atrás de desgraças, tantas e todas ensanguentadas, feridas de morte,
lavadas em lume, esfrangalhadas por caninos, mostradas em écrans de loucura que
me dão vómitos.
É um patamar diferente da loucura política que nos amachuca e espezinha,
numa espécie de puzzle que se completa e complementa e que me faz lembrar À beira do fim (Make room, make room, no original) da colecção de Ficção Científica
da Caminho de Bolso (com capa azul, que se distinguiam dos policiais que era
pretos; foram dos poucos livros que ficaram com o meu ex-marido depois do
divórcio).
O autor, Harry Harrison, (morreu há duas semanas) viu o seu livro dar
origem a um clássico do cinema, Soylent
Green, que projectava o futuro de 2022, longe de 1973 quando foi gravado (e
mais ainda de 1966, quando foi escrito), mas próximo agora de 2012.
No livro, a crise demográfica é tão grande, a sobrepovoação do planeta é
tão dramática, que se paga às pessoas para morrerem, não só para que
desapareçam como também para, com os seus corpos, poderem alimentar o resto da
população.
As pessoas que se engalfinham como autênticos cães enraivecidos, e os que
teimam em manter cães que diariamente matam outras pessoas, não estranhariam
viver num mundo onde o alimento fossemos nós.
Os que desenvolvem esforços para se acabarem com as touradas,
espectáculos horríveis e sangrentos que têm de acabar para dar espaço na
comunicação social, e na vida!, a outros espectáculos horríveis e sangrentos,
mas com protagonistas humanos, também dão excelentes cidadãos desse mundo
impensável.
Os maus tratos, as mortes, os danos perpétuos que compõem as paredes
sólidas da casa da violência doméstica, e que são como a guerra na Síria,
qualquer coisa que se passa algures e que não é nada connosco, nem dariam conta
se vivessem em 2022 e fossem alimentados daquela forma.
Os que usam as curvas das estradas como nós corredios de cordas para
suicídios colectivos, num acelerar que é sempre lento aos olhos dos condutores,
também seriam eleitos.
Indignamo-nos com a desvalorização dos valores morais, mas o facto de
não se gostar de alguém é motivo suficiente para lhe enfiar um balázio na
testa. Que raio de gente somos nós?
Há muitos anos, ainda aluna da Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa, ao lado da porta desta instituição vi um homem novo sentado no chão com
um cartaz que dizia Liberdade ao Incesto.
O meu cérebro lá processou aquilo como um erro de leitura, voltei atrás, reli e
confirmei a mensagem. Era mesmo assim. Pelos vistos aquilo vingou sem que me
apercebesse e crescemos numa anormalidade a que não se dá importância,
engolem-se os dias e nada mais.
Sem comentários:
Enviar um comentário