quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Alice no país das traduções

Tal como a Lua que todos vemos e sabemos existir mas onde poucos puseram o sapatinho, também a Alice faz parte do imaginário de praticamente todos os que conheço mas raros foram os que leram o livro, embora vão adiantando, como compensação gaiteira, que viram o filme ou os filmes, que animados há muitos.
Pois também eu fazia parte do lote dos desprovidos da leitura integral de As Aventuras de Alice no País das Maravilhas, mas já não faço.
Porém, se me alegra ter lido o livro desgosta-me profundamente que Alice em parte alguma no País das Maravilhas se tenha sentado pois embora Lewis Carrol a tenha sentado várias vezes, José Vaz Pereira e Manuel João Gomes lá acharam que assim não estava bem e resolveram assentá-la por diversas vezes, bem como o casal real que igualmente se assenta e nunca se senta.
Outra mudança que os tradutores assinam é a opção por Tartas em vez das simplórias tartes. Ainda se fosse uma quiche, agora uma tarte! Ora uma Tarta manda outro gabarito, remete-nos para o mundo dos tártaros, para uma dimensão cremosa, um bechamel, enfim, manda-nos para outro sítio e se gostamos ou não isso é problema nosso, com certeza da falta de palato para coisas requintadas como Tartas.
Uma terceira opção de tradução passa do original que diz:

“The Queen of Hearts, she made some tarts
All on a summer day;
The Knave of Hearts, he stole some tarts
And took them quite away!”

Para:
"A Rainha de Copas
De um baralho de cartas
Fez para o jantar
Umas ricas tartas
Num dia de Verão;
O Valete de Copas
De um baralho de cartas
Deu-lhe para roubar
E comer as tartas.
Ladrão!
Comilão!"

Numa quarta mudança esta edição elimina interrogações! Qué lá isso de perguntar? Atão somos burros? Não sabemos, temos que perguntar? Temos que questionar as pessoas, os bichos, os seres, o baralho de cartas, sejam eles quem forem? Há que evitar incómodos e o melhor é afirmarmos, nada de perguntas. E assim sempre se poupa na tinta da impressão.
Uma quinta alteração na tradução baralha-nos a visualização que as palavras transportam: se Lewis Carrol se ficou pela expressão dos números das cartas, Cinco, Sete ou Dois, os tradutores resolveram atalhar como quem traduz em cima duma mesa de pano verde e vai daí o Dois vira Bisca, o Cinco transforma-se em Quina e, surpresa das surpresas, o Sete passa a Sena, ou seja, ou é uma grande batota ou os tradutores não conhecem as cartas e, quiçá, os números, e baralham o Seis com o Sete.
É uma tradução difícil? Sim, sem dúvida, por entre o non sense espreguiçam-se exemplos dos mais variados, como por exemplo quando o autor, tendo que apresentar uma palavra começada por M escolhe MOON que, em português, recua uma casa como se fosse o Jogo da Glória e coloca-nos na letra L, de Lua. Há que dar a volta e resolver a questão que, neste caso, optou por, não fugindo do modo lunar, buscar a expressão Quarto Minguante da Lua, com o Minguante em itálico.
A edição é em causa é da QuidNovi, colecção Biblioteca de Verão, 2010. Desaconselha-se. Mas isso é apenas a minha opinião.

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