quinta-feira, 25 de agosto de 2011

As velas ardem até ao fim na Kidzania

Há uns meses perguntaram-me por um livro de Sándor Márai: As velas ardem até ao fim. Lembro-me bem porque a pessoa que me perguntou se eu o tinha falou-me em É com cera que se fazem velas ou outro título igualmente cómico e aquilo deu gargalhada conjunta. Eu não o tinha mas conhecia o título, mas não o autor. Na altura pesquisei e, vá lá saber-se porquê, meti na cabeça que Sándor era uma ela e não um ele e vivi nessa infame mentira até há duas semanas atrás quando fui à Kidzania com os meus sobrinhos.
Chegámos de amanhecida, como o peixe de Setúbal, às dez e meia da manhã, eles a aproximarem-se perigosamente duma apoplexia com tanta excitação e eu a pensar onde me sentaria em meditação para passar um dia inteiro num centro comercial que abomino e quando digo que abomino, não me refiro aquele em particular, mas a todos do mundo inteiro, ao contrário de praças e mercados e se os mercados forem fluviais, ai então, ui ui, sou eu que entro em êxtase.
Lá despachei um comandante dum avião e uma técnica de reciclagem, espreitei os corredores da Kidzania e fui à livraria onde, entre outros, comprei As velas ardem até ao fim. Sentei-me num sofá branco que fica ao ar livre – zona de fumadores – e ali fiquei com a cera a derreter-se até às seis da tarde quando fui buscá-los e porque aquilo fecha a essa hora, caso contrário gramava mais umas horas de espera. Fiz um intervalo para lhes dar de almoço, almoço que se atrasou porque a minha sobrinha estava a fazer horas extra na redacção do jornal!
Faltavam duas páginas para acabar a leitura quando alguém se meteu comigo. Tive a vaga sensação que alguém me falava mas a absorção das palavras era grande. O homem insistiu e lá levantei os olhos em jeito de perguntar o que queria, logo agora que estou a acabar.
- A senhora não lê, a senhora come o livro…
A simpatia que o homem quis enfiar no início de conversa só lhe trouxe dissabores: então em meia dúzia de palavras chama-me senhora duas vezes?
- Posso ajudá-lo?
- Gosta muito de ler, vê-se.
- É verdade… e estou mesmo a acabar este livro… se não se importa…
Ele levantou as mãos em sinal que não se importava e as velas lá arderam até ao fim.
Assim que fechei o livro, ele, sem respeitar aqueles instantes dum the end que, sendo imaginário, é bem real e sabe tão bem como o momento em que tiramos a cabeça de dentro de água depois dum mergulho, desata logo a falar:
- Sabe, eu sou canalizador e aqui há uns tempos fomos chamados a casa duma senhora que também gostava muito de ler. Ela tinha lá um problema na cozinha e…
Por favor meu Deus faz com ele não me descreva problemas de canos e maus cheiros e entupimentos…
- … e depois da coisa resolvida ela convidou-nos a beber café na sala. Olhe, a senhora tinha para cima de cem livros na sala! Isto sem exagero! Mais de cem!
Por décimos de segundo pensei o que responderia: teimava com ele a dizer-lhe que isso era impossível e que cem era um número astronómico? Quem é que tinha cem livros em casa? Limitava-me a um Ah e desviava o olhar? Ou dizia-lhe que cerca de cem livros tenho eu à cabeceira, sem contar os do resto da casa, da casa dos meus pais, da minha irmã, os que estão com o Marcelo ou com a Luísa e todos os emprestados ou os que se amontoam no meu trabalho, por falta de espaço em casa?
Decidi-me por um abrir de olhos simpático fazendo eco da sua profunda admiração e acrescentei que sim, que gostava de ler; e num repente, estúpido e insensato, e depois dum milésimos de dúvida na garganta sobre se deveria ou não formular a pergunta, ainda assim, quis saber o que gostava ele de ler.
- O Correio da Manhã.
E como se isso não bastasse, ainda aconchegou a frase:
- Todos os santos dias!
Senti vontade de acender umas velas e fazer uns pedidos, mas optei por me levantar alegando que tinha que ir buscar os miúdos. Desejámo-nos mutuamente boas tardes e fui em perseguição duns funcionários dos correios que já tinham sido pediatras.
Foi um dia de trabalho em cheio.

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