sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Ressonar e ranger os dentes

Uma grande Amiga reformou-se. Contou-me por telefone e não viu a minha cara de idiota a receber a notícia. Para mim ela é o antípoda da reforma e, se bem que mereça como ninguém o novo estado, senti um peso nas costas, como se os anos andassem a brincar comigo e, de repente, me saltassem em cima dos ombros, num mero jogo infantil, já te apanhei!
Bem sei que ela não vai ficar parada, embora esteja a descansar e a usufruir do sossego, enquanto vai pondo pomadas para tapar certas facadas que lhe deram nos últimos tempos, profissionalmente falando.
- Deita isso tudo para trás das costas! – Sou eu a dizer-lhe ciente de que não vale a pena gastarmos tempo com certas coisas. Principalmente agora.
Sentada num banco verde no pátio setecentista, de repente, sinto-me acabrunhada sem perceber bem porquê.
Desligo o telefone e agarro em Paixão em Florença de Somerset Maugham, mas não vejo Florença. A bela cidade da qual guardo memórias avermelhadas, seja dos telhados, seja dos entardeceres, nem se aproxima de mim.
Penso na minha amiga e em como gostava de ir a Florença com ela e fazer uma série de coisas que nunca fiz, quando sou assaltada por um pensamento horrível: penso nela como se ela tivesse morrido e reflicto que o que senti momentos antes foi a aproximação do mesmo estado mas para a minha pessoa. Afasto a estupidez do pensamento, zangada comigo própria.
Conheci a M. quando ambas nos inscrevemos na especialização em ciências documentais nos idos do século passado. Pois. Encontrámos imensa coisa em comum logo no primeiro dia, eu fascinada pela força que ela emanava e pela boa disposição de quem nunca vi esgotada de sorrisos, sinceros, ainda por cima, e cuja agenda com datas precisas me ajuda, a mim, a saber quando este ou aquela fazem anos, caso contrário, nunca diria uma palavra fosse a quem fosse. Bem, com excepções, como a AI cujo aniversário coincide com a data da morte da Princesa Diana, motivo para que me lembre sempre, ou melhor, a televisão ou a rádio dão-me a dica que eu aproveito.
Lembro-me da M. e penso em castelos inexpugnáveis, em fortalezas, em cidades invictas, em pontes indestrutíveis. Penso também nas mais saborosas gargalhadas, numa inteligência invejável, numa sagacidade e perspicácia difíceis de encontrar e, last but not least, num ombro e em mil conselhos que sei serem para meu próprio bem.
Ao contrário de outras pessoas ela nunca se calou sobre certos problemas, ou seja, não é uma amiga passiva, mas antes pelo contrário, muito activa, dando a sua opinião, o seu conselho, pensando nas coisas como se fosse ela. Dedico-lhe o pensamento e invariavelmente sinto-me em falta, sempre. Nunca lhe ouvi palavras vãs, nunca senti que me respondia como se eu tivesse carregado na tecla das perguntas frequentes e saísse qualquer coisa pré-programada, nunca me deu conselhos para me fazer favores. O grande favor que me faz é estar sempre preocupada comigo, atenta e próxima, mesmo que sejam muitos os quilómetros que nos separem.
Numa ocasião fomos a um congresso da nossa especialidade profissional em Aveiro. Teimei em ficar num dos meus locais de eleição, no hotel ao lado do farol. Obrigou-nos a fazer muitos mais quilómetro que os outros, instalados algures nas curvas da ria, mas valeu a pena. Quando chegámos aproximamo-nos da recepção de tal forma que o rapaz nos lançou um olhar como se fossemos um casal. Ela deu tamanhas gargalhadas que me ficaram gravadas para sempre na amizade que tenho por ela. Nessa noite choveu em barda. Deitámo-nos cada uma na sua caminha, sempre a rir, a gozar com todas as personagens que tínhamos encontrado, alguns do dia a dia, mas que naquelas ocasiões se mostram tão diferentes como a noite do dia, outros que só encontramos em reuniões nacionais, conhecidos e desconhecidos. Rimos até à exaustão. Às tantas eu estava a dizer qualquer coisa e ouvi-a ressonar. Calei-me, levantei o estore e fiquei a fumar à janela a olhar para o maravilhoso espectáculo da chuva que caia com tanta força que levantava uma nuvem no chão. De repente ela acorda e continua a falar onde tínhamos deixado a conversa! Foi de morrer a rir. No dia seguinte discutimos porque ela teimou que não tinha adormecido, tanto mais que lhe custava pegar no sono porque eu ranjo os dentes tão alto que não deixo dormir ninguém!
Os mesmos motivos criaram outro momento de memória passado em casa de uns primos meus em Vila Nova de Gaia onde ficámos a propósito dum congresso no Porto. Como somos as duas generosas de formas não cabíamos na cama. Assim, dormimos à vez, metade na cama e metade num sofá, sentadas. Porém, o problema não era o cómodo, mas o facto de nenhuma conseguir adormecer porque formávamos uma dupla digna de circo, uma ressonava e a outra rangia os dentes…
De todas as qualidades que lhe reconheço talvez a frontalidade seja a que destacaria, numa sociedade onde tudo é ambíguo, dúbio e dissimulado e onde as pessoas arranjam os mais variados disparates para se apoiarem ao explicarem porque não são frontais.
Longa vida, minha amiga, longa vida com esse carácter e esse espírito.

Sem comentários:

Enviar um comentário