As marés são fenómenos que até passam despercebidos se nos instalarmos lá no princípio do areal. Mas quando esticamos a toalha e ficamos com as unhas a baterem na água a história é outra. Ora se complicarmos a equação e lhe juntarmos uma raiz quadrada de ondas o resultado é = a toalha encharcada, saco com carteira e outros pertences lavado com água do mar, chinelos a boiarem na espuma e nós com cara de parvos.
Foi o que me aconteceu ontem.
O protagonista de Nothing Hill tinha uns óculos de mergulho graduados e já me lembrei de arranjar uns para mim, pois assim evitava certas cenas. Como não vou à água de óculos, deixo sempre a toalha o mais perto possível para me poder orientar quando emerjo a imitar a Ursula Andress ou, se tivermos em conta o meu bronzeado, talvez mais a Halle Berry. Se eu me tivesse lembrado que qualquer uma delas não usa toalha não teria deixado a minha ser arrastada pelas ondas, nem obrigado a mãe de família, minha vizinha e colega de trabalho naquela ocupação maquinal que é estar deitada na areia, levantar, mergulhar, voltar, deitar na areia, and so one, and so one, levantar-se e resgatar a minha tralha mais para cima enquanto eu estava de mergulho, cega, sem prótese ocular, ignorante da movimentação que se dinamizava a apenas meia dúzia de metros de mim.
Quando saí da água avistei o azul forte do saco e achei a distância entre mim e ele muito grande, garantidamente, alguns dez passos! Lá agradeci as andanças da senhora e senti a risota que eu própria dedico a todos quantos são alvo das brincadeiras das ondas quando a maré sobe. Agarrei na toalha, lavei-a para me livrar daquela areia e escorri o melhor que consegui aquela autêntica tenda de campanha, daquelas familiares. Lá a estendi novamente e assim fiquei o resto do tempo que permaneci na praia, até que ao fim da tarde a esgueirei para dentro da máquina de lavar, numa espécie de lavagem ao estômago, de onde saiu sem vestígios da tentativa de afogamento dessa tarde.
Os primos fizeram uma festa quando nos viram, logo se acharam outras espreguiçadeiras e mais uma ou outra cadeira e mais beijos e palmadas nas costas e o meu pai a falar devagar, tentando conjugar a resposta certa à pergunta que lhe era colocada, com o pensamento permanente no arrependimento de ali termos ido. Mas tínhamos ido e eles podiam estar quase nus mas eram vigorosos na expectativa que ficássemos, ele logo a pedir mais imperiais e, bem, sentados, sempre se viam menos, pelo que acabámos por nos sentar.
Eu também tinha ficado impressionada com o quadro mas a água exercia em mim um chamamento mais forte e em minutos estava a dar valentes mergulhos em ondas de paixão. As ondas eram mesmo apaixonadas e foram crescendo, crescendo, crescendo até que uma delas desabou na praia até ao paredão. Foi o caos: barracas e tendas e roupa e chapéus-de-sol e crianças e sapatos e toalhas e tudo quanto se imagine estar numa praia num domingo de Verão, por volta das três ou quatro da tarde. Escusado será dizer que a barraca dos primos não foi poupada e a roupa desapareceu. Em segundos a esplanada do paredão ficou vazia com todos os ocupantes a correrem para a areia a fim de procurarem os seus bens e pertences, mas que é feito deles? Duas horas depois ainda não se tinham achado as coisas dos primos e lá andava ele de rabo de tigre alçado e cigarro na mão a procurar a carteira, a prima a escavar perto da barraca, nós a ajudarmos, os meus pais aliviados por não terem chegado à areia, logo, a arrastarem um saco originalmente seco no meio daquilo tudo.
Havia gente em lágrimas, magros e gordos despidos e aflitos em sintonia, de dentro de água homens, mulheres e crianças apanhavam calçado, roupa e os mais diversos objectos. Apesar do calor e da reposição da normalidade do mar, as pessoas começaram a abandonar a praia com desalento. A carteira dos primos não aparecia. O meu pai dava voltas ao areal como se disso dependesse a vida de alguém pois o primo já tinha dito que, não tendo chaves do carro, teríamos que ser nós a levá-los e percebemos logo que o meu pai não estava com grande vontade de dar boleia a uma réplica cómica do Tarzan, uma miniatura, um esboço do Johnny Weissmuller. Em tudo.
Os banheiros, na altura não havia nadadores salva-vidas, eram mesmo banheiros, iam amontoando o que encontravam no meio da areia e o que era resgatado de dentro de água e as pessoas dirigiam-se ao monte de destroços em busca do que fosse seu, numa altura em que não se tinha grande receio que alguém levasse o que não lhe pertencia e a honestidade ainda existia. Conclusão, a prima lá encontrou o saco no meio do monte bagunçado de areia molhada, onde estava a carteira e as chaves do carro. Da roupa não se tiveram notícias, mas como tinham ido para a esplanada com as toalhas, saíram da praia dignamente enrolados nelas, o que não era mau em comparação com outros que não tinham nada, ou com o cómico-ridículo de outros ainda só com um chinelo por exemplo.
E é assim que sempre que as ondas molham a ponta duma toalha eu me lembro daquela célebre tarde em S. João, quando os primos foram privados da roupa, numa espécie de castigo ou vingança do destino por andarem tão parcamente vestidos na praia. Se foi castigo não sei, mas hoje a moda tem outras regras, e encontra-se gente mais vestida na praia que na rua.
Foi o que me aconteceu ontem.
O protagonista de Nothing Hill tinha uns óculos de mergulho graduados e já me lembrei de arranjar uns para mim, pois assim evitava certas cenas. Como não vou à água de óculos, deixo sempre a toalha o mais perto possível para me poder orientar quando emerjo a imitar a Ursula Andress ou, se tivermos em conta o meu bronzeado, talvez mais a Halle Berry. Se eu me tivesse lembrado que qualquer uma delas não usa toalha não teria deixado a minha ser arrastada pelas ondas, nem obrigado a mãe de família, minha vizinha e colega de trabalho naquela ocupação maquinal que é estar deitada na areia, levantar, mergulhar, voltar, deitar na areia, and so one, and so one, levantar-se e resgatar a minha tralha mais para cima enquanto eu estava de mergulho, cega, sem prótese ocular, ignorante da movimentação que se dinamizava a apenas meia dúzia de metros de mim.
Quando saí da água avistei o azul forte do saco e achei a distância entre mim e ele muito grande, garantidamente, alguns dez passos! Lá agradeci as andanças da senhora e senti a risota que eu própria dedico a todos quantos são alvo das brincadeiras das ondas quando a maré sobe. Agarrei na toalha, lavei-a para me livrar daquela areia e escorri o melhor que consegui aquela autêntica tenda de campanha, daquelas familiares. Lá a estendi novamente e assim fiquei o resto do tempo que permaneci na praia, até que ao fim da tarde a esgueirei para dentro da máquina de lavar, numa espécie de lavagem ao estômago, de onde saiu sem vestígios da tentativa de afogamento dessa tarde.
A subida da maré de forma repentina mais extraordinária que ganho memória aconteceu em S. João do Estoril e teve como protagonistas uns primos da minha mãe que encontrámos por acaso.
Armados em finos, dividiam o tempo entre a barraca na areia e umas espreguiçadeiras no paredão onde iam bebendo umas imperiais. Foi precisamente aí que os avistámos e foi precisamente nesse momento que o meu pai torceu o nariz, as sobrancelhas, a boca e todo o rosto. Os primos eram muito p’ra frente e ela ostentava um biquíni minúsculo que fazia as vezes de íman e puxava os olhares para cima do seu bronzeado. Como se isso não bastasse ele usava uma tanga tigresa que serviria de fio dental a qualquer homem com uma constituição normal, mas a ele tapava-o um pouco mais pois para além do esqueleto tinha um ou outro músculo, nada mais. Isto era na altura em que os homens usavam cabelo comprido e saltos altos, diga-se de passagem, e o primo era um metrosexual dos anos setenta, cujos modelos fashion não agradavam ao meu pai, cuja bigodaça se torcia com aquelas modernices.
O espectáculo dava espectáculo no paredão e o meu pai interiorizou logo duas ou três imprecauções, que nunca em tempo algum lhas ouvimos verbalizar mas mesmo que nunca as pensasse aquele momento propiciava que começasse com essa prática, pensando que, com tanta gente por ali, logo havíamos de ser nós a encontrar gente conhecida e, com tanta gente que conhecíamos, logo haviam de ser aqueles e, com tanta estação que o ano tem, parece que não mas ainda são quatro, e o leque de escolha de roupa é tão grande, logo havia de ser no Verão e logo havia de ser naquela figurinha. Os primos fizeram uma festa quando nos viram, logo se acharam outras espreguiçadeiras e mais uma ou outra cadeira e mais beijos e palmadas nas costas e o meu pai a falar devagar, tentando conjugar a resposta certa à pergunta que lhe era colocada, com o pensamento permanente no arrependimento de ali termos ido. Mas tínhamos ido e eles podiam estar quase nus mas eram vigorosos na expectativa que ficássemos, ele logo a pedir mais imperiais e, bem, sentados, sempre se viam menos, pelo que acabámos por nos sentar.
Eu também tinha ficado impressionada com o quadro mas a água exercia em mim um chamamento mais forte e em minutos estava a dar valentes mergulhos em ondas de paixão. As ondas eram mesmo apaixonadas e foram crescendo, crescendo, crescendo até que uma delas desabou na praia até ao paredão. Foi o caos: barracas e tendas e roupa e chapéus-de-sol e crianças e sapatos e toalhas e tudo quanto se imagine estar numa praia num domingo de Verão, por volta das três ou quatro da tarde. Escusado será dizer que a barraca dos primos não foi poupada e a roupa desapareceu. Em segundos a esplanada do paredão ficou vazia com todos os ocupantes a correrem para a areia a fim de procurarem os seus bens e pertences, mas que é feito deles? Duas horas depois ainda não se tinham achado as coisas dos primos e lá andava ele de rabo de tigre alçado e cigarro na mão a procurar a carteira, a prima a escavar perto da barraca, nós a ajudarmos, os meus pais aliviados por não terem chegado à areia, logo, a arrastarem um saco originalmente seco no meio daquilo tudo.
Havia gente em lágrimas, magros e gordos despidos e aflitos em sintonia, de dentro de água homens, mulheres e crianças apanhavam calçado, roupa e os mais diversos objectos. Apesar do calor e da reposição da normalidade do mar, as pessoas começaram a abandonar a praia com desalento. A carteira dos primos não aparecia. O meu pai dava voltas ao areal como se disso dependesse a vida de alguém pois o primo já tinha dito que, não tendo chaves do carro, teríamos que ser nós a levá-los e percebemos logo que o meu pai não estava com grande vontade de dar boleia a uma réplica cómica do Tarzan, uma miniatura, um esboço do Johnny Weissmuller. Em tudo.
Os banheiros, na altura não havia nadadores salva-vidas, eram mesmo banheiros, iam amontoando o que encontravam no meio da areia e o que era resgatado de dentro de água e as pessoas dirigiam-se ao monte de destroços em busca do que fosse seu, numa altura em que não se tinha grande receio que alguém levasse o que não lhe pertencia e a honestidade ainda existia. Conclusão, a prima lá encontrou o saco no meio do monte bagunçado de areia molhada, onde estava a carteira e as chaves do carro. Da roupa não se tiveram notícias, mas como tinham ido para a esplanada com as toalhas, saíram da praia dignamente enrolados nelas, o que não era mau em comparação com outros que não tinham nada, ou com o cómico-ridículo de outros ainda só com um chinelo por exemplo.
E é assim que sempre que as ondas molham a ponta duma toalha eu me lembro daquela célebre tarde em S. João, quando os primos foram privados da roupa, numa espécie de castigo ou vingança do destino por andarem tão parcamente vestidos na praia. Se foi castigo não sei, mas hoje a moda tem outras regras, e encontra-se gente mais vestida na praia que na rua.
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